O Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (FGV) divulga um estudo inédito que analisa a efetividade da bioenergia tropical na transição energética global e as distorções provocadas por políticas internacionais que, sob o argumento da sustentabilidade, acabam privilegiando tecnologias selecionadas em detrimento de alternativas mais eficazes na redução de emissões.
O relatório, intitulado “Bioenergia tropical e os dilemas da transição energética: neutralidade tecnológica e valorização global das soluções nacionais”, alerta para os riscos de uma transição conduzida de forma assimétrica, marcada por barreiras climáticas que podem penalizar soluções de baixo carbono desenvolvidas por países tropicais. O estudo defende que as políticas climáticas e energéticas devem ser pautadas pela neutralidade tecnológica e pela avaliação do desempenho climático efetivo das diferentes rotas de descarbonização — e não por preferências geopolíticas, tecnológicas ou regionais.
“A transição energética precisa ser guiada por desempenho, não por preferências. O Brasil mostra que é possível utilizar soluções locais para reduzir emissões em larga escala com sustentabilidade econômica, inclusão social e inovação local”, resume Luciano Rodrigues, coordenador da pesquisa.
MOBILIDADE
O relatório toma a mobilidade veicular como exemplo e evidencia como as soluções tropicais podem ser eficazes, acessíveis e escaláveis na descarbonização.
Com base em Análise de Ciclo de Vida (ACV) — que considera as emissões desde a produção do veículo e do combustível até o uso e descarte —, o estudo mostra que os veículos novos vendidos no Brasil emitem, em média, 31% menos CO₂ por quilômetro rodado do que os da União Europeia, 34% menos que os dos Estados Unidos e 42% abaixo da média chinesa.
Um automóvel a etanol hidratado (E100) emite cerca de 85 gCO₂e/km, valor quase três vezes menor que o de veículos a gasolina em mercados desenvolvidos, cujas médias variam entre 232 e 241 gCO₂e/km. Mesmo os modelos flex (E50) — abastecidos com metade etanol e metade gasolina — mantêm vantagem de 60 a 70 gCO₂e/km sobre as médias internacionais.
Nos híbridos (HEVs), o desempenho brasileiro é ainda mais expressivo: um híbrido abastecido exclusivamente com etanol (E100 HEV) emite apenas 79 gCO₂e/km, resultado superior ao de elétricos puros (BEVs) nos mercados da Europa, EUA e China, onde as emissões variam de 128 a 233 gCO₂e/km quando se incluem as pegadas de produção e descarte das baterias.
“Biocombustível sustentável e eletrificação entregam eficiência imediata com custo competitivo, rede de abastecimento existente e baixo impacto climático. É uma solução tropical com resultados globais”, acrescenta Rodrigues.
Participação das diferentes classes de veículos novos nas vendas em 2024 e nível médio de emissões de GEE (vendas em % e emissões em g CO2 eq./km)
DISTORÇÕES E BARREIRAS NAS POLÍTICAS GLOBAIS
A análise contesta narrativas recorrentes, como o suposto dilema “food versus fuel” — segundo o qual a produção de biocombustíveis competiria com a de alimentos. Os dados mostram que essa hipótese não se sustenta: a bioenergia tem contribuído para gerar emprego e renda, elevar a produtividade agrícola e fortalecer a segurança alimentar, desde que produzida de forma sustentável.
Outro ponto sensível é a aplicação dos chamados fatores de mudança indireta no uso da terra (iLUC) com parâmetros genéricos e sem consenso científico que penalizam desproporcionalmente os biocombustíveis. O estudo observa que esses critérios raramente são aplicados a outras fontes energéticas que também alteram o uso da terra, e tampouco refletem particularidades do modelo brasileiro, como o uso do milho de segunda safra e a recuperação de pastagens degradadas, por exemplo.
Na União Europeia, políticas recentes impõem limites rígidos ao uso de biocombustíveis agrícolas e aplicam fatores de multiplicação que aumentam artificialmente o peso da eletricidade e dos combustíveis sintéticos nas metas de energia renovável. A própria ReFuelEU exclui biocombustíveis convencionais na definição de combustível sustentável de aviação (SAF). Nos Estados Unidos, o etanol de milho brasileiro é tratado da mesma forma que o norte-americano, impondo penalidades baseadas em emissões indiretas que não refletem a realidade tropical.
“Embora os resultados do Brasil sejam concretos e auditáveis, os biocombustíveis ainda são vistos com desconfiança por alguns países. Há viés e faltam critérios objetivos na definição do que é ‘verde’ ou ‘limpo’”, ressalta Rodrigues.
NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA E INTEGRAÇÃO ENERGÉTICA
O estudo recomenda que a neutralidade tecnológica seja adotada como princípio orientador das políticas de descarbonização, assegurando condições equitativas de reconhecimento e incentivo a todas as rotas que comprovem eficiência climática mensurável e cientificamente comprovada.
Para o Brasil, os autores propõem fortalecer programas estruturantes, como o RenovaBio, as políticas de mobilidade sustentável, o programa de biometano e o desenvolvimento do mercado para combustível sustentável de aviação (SAF), garantindo previsibilidade regulatória e eliminando distorções fiscais que favorecem tecnologias sem comprovação de menor intensidade de carbono.
Também é enfatizada a importância de integrar bioenergia e eletrificação na mobilidade, criando um modelo híbrido de descarbonização capaz de unir motores de combustão eficientes e tração elétrica complementar.
DIPLOMACIA CLIMÁTICA E A LIDERANÇA DO SUL GLOBAL
Os autores destacam que o Brasil deve reforçar sua atuação internacional para reposicionar as soluções tropicais na agenda climática global. Esse movimento passa por uma atuação diplomática coordenada com países emergentes, com o objetivo de harmonizar critérios de reconhecimento de biocombustíveis sustentáveis e consolidar a bioenergia como instrumento legítimo de descarbonização.
O estudo ressalta que o país deve exercer liderança ativa em foros multilaterais, defendendo métricas baseadas em desempenho real de emissões, e não em preferências tecnológicas. Essa estratégia deve ser acompanhada por geração de conhecimento sobre os sistemas brasileiruma comunicação internacional estruturada, sustentada em dados comparativos, análises de ciclo de vida auditáveis e evidências científicas.
DESEMPENHO, EQUIDADE E RECONHECIMENTO
Com mais de 60% da energia renovável do país proveniente da bioenergia e quase 30% da oferta interna de energia ligada ao agronegócio, o Brasil já é uma potência verde, embora nem sempre reconhecida como tal.
O relatório conclui que a transição energética global só será justa e efetiva se reconhecer a diversidade de caminhos. Não se trata de escolher uma tecnologia, mas de medir resultados de forma justa, transparente e comparável. (Fonte: Uagro)