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No Dia do Professor lembro de Lurdinha, marqueteira do sertão

Por Ivan Roberto Peroni

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Professora de verdade era dona Lurdes. Eu tinha pouco mais de oito anos, estudava numa escolinha da fazenda do meu avô Antônio Dameto lá pelos lados de Tabatinga. Ficava impressionado com a sabedoria e a agilidade da mulher.

Estatura mediana, cabelos encaracolados, mais ou menos 35 anos, rosto arredondado e um sorriso que de vez em quando partia dos lábios grossos, a balbuciar o que era simplesmente necessário.

Da casa dos meus avós até a escola, uns quatro ou cinco quilômetros.

Uma sina que meu irmão João e eu tínhamos que fazer todos os dias – cortando pastos, atravessando cercas, correndo de medo de um ou outro boi, saltando pelas pinguelas, uma espécie de rally em meio ao sertão nos fins dos anos 50. Estes desafios fazíamos só prá ver a dona Lurdes. Não que fosse bonita. Absolutamente.

Dona Lurdes, vamos dizer assim, era o que o povo da fazenda chamava: flor do maracujá. Já adolescente e na cidade, descobri que assim a chamavam talvez até em respeito ao seu marido, porque a flor do maracujá é considerada como a flor da paixão, devido a sua forma: coroa de espinhos, cinco chagas, três pregos com que Jesus foi crucificado.

Se hoje lembro dessa minha segunda professora, não é por acaso. Gostaria de num gesto bem respeitoso, beijar suas mãos e dizer muito obrigado. Acontece que todos os alunos, antes de começar a aula, tinham que cantar, da mesma forma – respeitosa – a música Luar do Sertão. Não que a mulher fosse maestrina, mas bastava levantar o indicador da mão direita para quebrar o silêncio e sair a canção que ecoava naquele verde que se espalhava pela plantação.

“Não há, ó gente, oh não

Luar como esse do sertão

Oh que saudade do luar da minha terra

lá na  serra  branquejando, folhas secas pelo chão…”

Imagino então, que ela tenha sido a minha primeira professora de marketing, pois dona Lurdes não queria apenas vender aos seus alunos a imagem do sertão, mas ela gostaria que os costumes da roça fossem preservados e que a música sertaneja jamais morresse. Sua voz, ainda hoje, me conduz a entender a música como se fosse o hino da escola:

“Coisa mais bela nesse mundo não existe

Do que ouvir um galo triste no sertão que faz luar

Parece até que a alma da lua que descansa

Escondida na garganta desse galo a soluçar”

E dona Lurdes tinha outra qualidade: conseguia dar aula simultaneamente para as crianças do primeiro e segundo anos na mesma classe: duas fileiras para cada série. Se hoje me lembro dela nesta palestra sobre os avanços da geração “Z”, geração “Y” é que a vejo de forma segura a ensinar, sem maldades e riscos,  diferentemente das crianças de hoje que sentem-se à vontade quando ligam ao mesmo tempo a televisão, o rádio, o telefone, a música e a internet.

Essas crianças não conceberam o planeta sem computador, chats, telefone e celular, ao contrário dela que no sertão tinha o céu como cenário, ligava o marido no seu programa favorito para levar um dedo de prosa e as músicas  preferidas estavam no cantar dos pássaros. E na voz de dona Lurdes os versos ficavam mais simples e ingênuos para elogiar a vida no sertão.

Vejo meus filhos neste final de dia, desapegados das fronteiras geográficas pois Tabatinga se para eles é o sertão, sinto que para mim é um pedaço da história a ser lida de forma matreira, estudando e comparando o que aprendi com dona Lurdes.

Para os que estudaram nas escolas das fazendas devo confessar que a globalização não foi um valor adquirido no meio da vida a um custo elevado. Aprendemos a conviver com dona Lurdes já na infância. Como informação não falta às crianças de agora, digo que elas estão centenas de passos à frente dos mais velhos, porém nenhuma chance de adaptação aos velhos tempos.

Cá prá nós… Embora com portas abertas para o mundo da tecnologia essas crianças perdem prá dona Lurdes, minha eterna professora, sempre ligada à natureza que cercava o meu dia na escola.

**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do RCIARARAQUARA.COM.BR