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Uma crônica familiar em fim de semana

Por Luís Carlos Bedran

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Natália Ginzburg nasceu em Palermo, na Sicília, em 1916 e ao ler seu livro, “Léxico familiar”, fez-me recordar minha mãe, descendente de italianos, nascida em 1912 em Jurema, hoje Jurupema, distrito de Taquaritinga.

Viveram a mesma época, uma na Europa, outra no Brasil, entre as guerras mundiais e algumas coincidências de ideias houveram entre elas, guardadas as devidas proporções.

Assim, o nome de minha mãe, Splende, tal como o de seu irmão, Avenir, foram extraídos dos primeiros versos do“Inno dei Lavoratori” (ou “Canto dei Lavoratori”) escrito em 1886, de autoria de FilippoTurati, fundador do Partido Socialista Italiano: “Sufratelli, sucompagne/suvenite in fittaschiera: / sulla libera bandiera /splendeil sol dell’avvenir”.

Uma homenagem, anarquistas/socialistas que eram meus avós, àquele líder político que certa vez foi acolhido pela família de Natália em Turim, perseguido pelos fascistas de Mussolini.

Recordo-me do que ela me disse: que seu pai enterrou o retrato do Duce. Então o admirava e seguia? Não. É que no início de sua vida política, Mussolini fazia parte do Partido Socialista Italiano; depois é que se tornou ditador.

A família de Natália, de origem judia e que fazia parte da resistência, foi perseguida pelos fascistas e seu marido, Leone Ginzburg, foi torturado e morto pelos nazistas em Roma.

Splende escrevia crônicas e artigos no jornal do qual seu pai era dono; depois tornou-se proprietária quando a legislação ditatorial de Getúlio Vargas obrigou os italianos (e também os alemães e japoneses) radicados no País — e que foram perseguidos —, a não possuírem bens em seus nomes.

Sua formação — também foi professora no meio rural —, embora não formada, era e sempre foi democrática e se revoltava contra as injustiças de toda ordem. Recebia na redação do jornal notícias e informações sobre o andamento dos combates na Europa e também panfletos com as fotos chocantes e impressionantes sobre as atrocidades praticadas pelos nazistas nos campos de concentração na Polônia.

Nas correspondências românticas que trocava com meu pai, que também na mocidade era jornalista e cronista, transmitia algumas ideias que seriam avançadas na época, sobre a participação ativa da mulher na vida política e social do País. Teria sido talvez uma espécie de feminista, “avant lalettre”.

Contava-me que na fazenda onde lecionava devorava os clássicos romances do início do século sob a lamparina à querosene, a tal ponto que sua face ficava toda cheia de fuligem. Lembro-me também dos livros de Stefan Zweig, caprichosamente encadernados e guardados na estante de casa, como “Carta de uma desconhecida”e “Amok”, escritor austríaco de origem judaica que, fugindo de Hitler, suicidou-se no Brasil.

Deixou de trabalhar quando se casou e mudou-se para uma cidade maior, num tempo em que a mulher deveria ficar em casa a trabalhar nos serviços rotineiros domésticos.Era o “zeitgeist”, o espírito da época. Embora pretendesse sempre “montar uma livraria”, nunca conseguiu. Teve de criar seus três filhos e educá-los dentro dos princípios socialistas em que também foi formada pelo pai italiano, o Maestro Oliviero e, claro, influenciada pelo marido, livre-pensador e democrata.

Hoje seria considerada moderna pela intensa participação da mulher em todo mundo, em todos os setores de atividade: artística, social, política e econômica. Creio que também teria gostado de ler os livros da escritora Simone de Beauvoir, nascida em 1908 na França e que esteve em Araraquara há exatos 50 anos, em companhia de seu companheiro Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista que proferiu uma memorável palestra na então Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. E que foi pioneira na emancipação da mulher, como relata em seu livro autobiográfico, “A força da idade”.

Se tivesse nascido na Itália, por sua formação, talvez tivesse passado pelas agruras pelas quais Natália Girzburg passou: perseguições dos nazifascistas, fome, mortes na família. A Europa sofreu duramente nas duas grandes guerras; mesmo assim recuperou-se, coisa essa que aqui nunca ocorreu. Ainda estamos no paraíso.

Quase até o fim da vida continuava ligada nos acontecimentos políticos, inconformada com as posições e atitudes de alguns líderes em fins do século passado. Gostaria até, como boa mãe que era, que me desse algum conselho, que o seguiria, como bom filho, sobre a atual situação por que passa nosso país.

Porque parece que os tradicionais países considerados democráticos passam por uma fase populista, quase que como uma era pré-fascista, nos mesmos moldes dos acontecimentos que anteciparam as trágicas guerras mundiais.

Mas esse é assunto para outra crônica.

Luís Carlos Bedran, Sociólogo e cronista da Revista Comércio, Indústria e Agronegócio de Araraquara e do RCIARARAQUARA

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