O número de brasileiros que têm nos aplicativos sua principal forma de trabalho aumentou expressivamente nos últimos dois anos. Segundo dados divulgados nesta sexta-feira (17) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir de inédita cooperação técnica com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1,7 milhão de pessoas executavam em 2024 trabalho em plataformas digitais — um crescimento de 25,4% em relação a 2022, quando o contingente era de 1,3 milhão.
Os chamados trabalhadores plataformizados — motoristas, entregadores e prestadores de serviços por aplicativos — já representam 1,9% da população ocupada no setor privado. Segundo o estudo, houve uma expansão de 52,1% do trabalho plataformizado em outros setores, com a região Sudeste concentrando o maior contingente desses trabalhadores, a ordem de 53,7% do total. Entre os trabalhadores que se ativam em plataformas digitais, prevalecem aqueles com formação entre nível médio completo ou superior incompleto.
“O avanço significativo do trabalho em plataformas no setor de serviços mostra o potencial ilimitado da expansão desse modelo de negócio para outros setores da economia, retratando alarmante quadro de devastação dos diretos do trabalho e de proteção social dos trabalhadores”, afirma a procuradora Clarissa Ribeiro Schinestsck, do Ministério Público do Trabalho em Campinas e responsável pela cooperação.
Apesar da expansão, os números revelam um cenário que consolida a precarização no trabalho em plataformas digitais, com a intensificação do trabalho por meio de longas jornadas, rendimentos menores por hora, alto nível de informalidade e forte controle exercido pelas empresas.
Os dados apontam, inclusive, para a expansão do trabalho por plataformas digitais para outros setores da economia.
Jornadas extensas e aumento aparente de rendimento – De acordo com o levantamento do IBGE, os trabalhadores de aplicativo têm, em média, jornada semanal 5,5 horas mais longa que os demais ocupados que não são plataformizados.
Ainda assim, os trabalhadores plataformas digitais recebem 8,3% menos por hora trabalhada — R$ 15,40, ante R$ 16,80 dos não plataformizados.
Embora o rendimento mensal médio dos trabalhadores por aplicativo seja 4,2% superior ao dos demais empregados do setor privado, essa diferença se explica justamente pela maior carga de trabalho, pela inflação vivenciada no país no período.
O aumento do rendimento mensal é resultado do excesso de horas trabalhadas, não de uma valorização do trabalho”, observa o relatório.
A pesquisa mostra que o discurso de autonomia, frequentemente usado pelas empresas de plataforma, contrasta com o controle efetivo exercido sobre os trabalhadores. Entre os motoristas de transporte particular, 55,8% relataram ter a jornada influenciada por bônus e promoções definidos pelas plataformas, enquanto 50,1% dos entregadores afirmaram estar sujeitos aos mesmos mecanismos. Além disso, mais de 30% declararam sofrer ameaças de bloqueio ou punição caso não cumpram metas determinadas pelo algoritmo.
“O controle algorítmico exerce sua influência a todo o momento sobre a intensidade do trabalho e o rendimento do trabalhador, e isso ficou comprovado na pesquisa”, aponta o pesquisador Ricardo Antunes, da Unicamp.
PREVIDÊNCIA E PROTEÇÃO SOCIAL: A GRANDE AUSÊNCIA
Mais de 60% dos trabalhadores plataformizados não contribuem para a Previdência Social, apesar de um leve aumento de 2,2 pontos percentuais desde 2022. A falta de cobertura previdenciária e o alto índice de informalidade tornam o grupo um dos mais vulneráveis do mercado de trabalho.
O estudo também mostra que 72,5% dos plataformizados atuam em transporte, armazenagem e correios, e 58,3% trabalham com transporte particular de passageiros. A maior parte é composta por homens (83,9%), com ensino médio completo ou superior incompleto (59,3%), e trabalhadores por conta própria (86%).
Entre os condutores de automóveis, os plataformizados registraram rendimentos mensais R$ 341 superiores aos dos motoristas tradicionais, mas trabalham cinco horas a mais por semana, com baixo acesso à previdência oficial. Já entre os motociclistas, o número de trabalhadores de aplicativo cresceu em 140 mil entre 2022 e 2024, e um terço deles já atua exclusivamente por meio dessas plataformas.
“Trabalho sem direitos ameaça virar regra”, alerta procuradora – Para Clarissa Ribeiro Schinestsck, os dados confirmam o avanço de um modelo baseado na desproteção social e no enfraquecimento de direitos trabalhistas, além de comprovar a precarização do trabalho, já demonstrada no estudo de 2022.
“A pesquisa do IBGE confirma o que o MPT tem observado nas investigações: a expansão do trabalho plataformizado vem acompanhada de precarização, com longas jornadas, ausência de direitos e de proteção social, e controle algorítmico excessivo. Esses números nos preocupam não apenas pelos impactos sobre os trabalhadores, mas também pelo risco de esse modelo se espalhar para outros setores, corroendo direitos e reduzindo a arrecadação pública”, afirma Clarissa.
Autonomia aparente e controle real – A PNAD também revela que a maioria dos trabalhadores de aplicativos de transporte afirma poder escolher dias e horários de trabalho (78,5%), mas essa flexibilidade é condicionada a mecanismos de incentivo e punição. Na prática, o trabalhador é “autônomo” apenas formalmente, enquanto sua rotina e ganhos são determinados pelo algoritmo.
O relatório conclui que, embora o trabalho por meio de plataformas digitais amplie oportunidades de geração de renda, ele impõe novos desafios à regulação trabalhista e à proteção social.
Para o MPT, a prioridade é garantir que a inovação tecnológica não seja usada como instrumento de retrocesso. “A transformação digital não pode significar um retrocesso nas relações de trabalho. É possível conciliar tecnologia e dignidade, desde que haja regulação e compromisso social”, enfatiza Clarissa Ribeiro Schinestsck.
“Os dados da pesquisa do IBGE de 2024 confirmam a realidade já revelada no ano de 2022, e, em alguns aspectos, até mesmo pior, reafirmando a ampla precarização no trabalho em plataformas digitais. A informalidade no trabalho, longas jornadas, baixa remuneração, responsabilidade pelos custos do trabalho e a ausência de direitos trabalhistas e previdenciários expõe a realidade de extrema precarização daqueles que trabalham para empresas de plataformas digitais”, afirma o professor e pesquisador José Dari Krein, da Unicamp.
A procuradora finaliza apontando que “os resultados da pesquisa reforçam a tese que já vem sendo denunciada pelo MPT, no sentido de que o trabalho prestado para empresas de plataformas digitais e um trabalho totalmente precarizado, desprovido de direitos trabalhistas e previdenciários e que ocorre à margem da legislação protetora do trabalho”.