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O casal de empresários araraquarenses vítimas do acidente aéreo em Orly na França em 1973

Passados 49 anos a família mantém a Fazenda Alpes, região de Santa Lúcia, que na época abrigava a Usina de Açúcar Santa Izabel. Francisco Malta Cardozo e Evangelina um mês depois das comemorações das bodas de ouro em São Paulo perderam a vida em acidente nos arredores de Paris juntamente com outras 121 vítimas, entre passageiros e tripulantes. Todos morreram sentados.

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Tarde de 11 de julho de 1973, quarta-feira, o desastre aéreo com avião da Varig em Orly, zona rural de Paris

Ano de 1973. Araraquara em sua área urbana tinha cerca de 82 mil habitantes. Era em meio a essas pessoas que um paulistano alto, olhos azuis, com pouco mais de 70 anos, circulava pelas ruas centrais da cidade até entrar na agência do Bradesco, na Rua São Bento, ao lado da sede da Associação Comercial para falar de negócios.

Via de regra era recebido pelo gerente Pedro Ivo Zuollo e para ele, o cliente Francisco Malta Cardozo trazia as novidades do mercado financeiro, fazia depósitos e aplicações oriundas da Usina Maria Izabel que ficava dentro da Fazenda Alpes que o pai da sua esposa Evangelina – Bento de Abreu Sampaio Vidal – comprara do coronel Pinto Ferraz em 1.895, avô do engenheiro e político Coca Ferraz. A propriedade ficava pelos lados de Santa Lúcia com diversas culturas, como café e cana-de-açúcar.

A mansão dos anos 50 onde o casal morava, duas quadras da Paulista

Assim, Evangelina e Francisco Malta Cardozo por força da atividade agropecuária e agroindustrial, em determinados períodos do ano, faziam da fazenda um ponto de moradia e transformavam Araraquara em seu centro de negócios. A Usina Maria Izabel, dada a complexidade e as dimensões da sua produção açucareira na época, era denominada desde a sua fundação, no ano de 1.952, Usina Maria Izabel S/A – Agroindustrial Açucareira. Naquela época as usinas de açúcar eram controladas pelo extinto I.A.A (Instituto do Açúcar e do Álcool), órgão do governo federal que estabelecia cotas de produção do açúcar cristal para o mercado interno, assim como do açúcar demerara quando o destino era o mercado externo.

Oriundos de famílias tradicionais de São Paulo e São Carlos estavam inseridos na lista de paulistanos quatrocentões – termo que surgiu em meados do século XX, por conta da celebração dos quatrocentos anos de fundação da cidade de São Paulo, em 1554. Quatrocentão também designava a elite da cidade de São Paulo, ou seja, a antiga aristocracia paulistana, descendentes dos chamados “barões do café”, que por sua vez descendiam da corte portuguesa, dos bandeirantes e também dos imigrantes os quais criaram poderosas raízes econômicas e sociais.

Casal desce a escadaria do palacete para início da missa de ação de graças pelas Bodas de Ouro

Havia então esse elo pois Bento de Abreu Sampaio Vidal, aos 22 anos, já estava casado com Maria Izabel de Arruda Botelho, filha de Bento Carlos de Arruda Botelho, irmão do Conde do Pinhal, e neta do Barão de Dourados, daí o nome da Usina Maria Izabel.

Tendo falecido em maio de 1948, em São Paulo, seus descendentes contam que a partir da década de 1940, Bento de Abreu já vinha, aos poucos, passando as atribuições de suas atividades aos filhos e genros. Com Maria Izabel que havia falecido em 1930, teve 11 filhos, entre os quais Evangelina Sampaio Vidal que se casou com Francisco Malta Cardozo, recebendo juntamente com seu irmão Paulo De Abreu Sampaio Vidal a Fazenda Alpes como herança de seu pai.

UM ACIDENTE MUDA OS TRAÇOS DA VIDA

Em junho de 1973, Francisco Malta Cardozo e Evangelina, estão prontos para comemorar Bodas de Ouro e por volta das 18h, em um casarão construído nos anos 50 por Ramos de Azevedo, a duas quadras da Avenida Paulista, começam a receber a fina camada da sociedade paulistana para o evento. Familiares e amigos se reúnem em uma festa social, cuja cobertura foi feita por um dos mais renomados jornalistas e cronistas sociais da época, Tavares de Miranda que escrevia para o jornal A Folha de São Paulo e onde permaneceu por 42 anos.

Foi durante o acontecimento social, que teve até mesmo celebração de missa dentro do palacete em que residiam, que Francisco decidiu presentear a esposa Evangelina com uma viagem a Paris, um mês depois.

A cerimônia religiosa em junho de 1973

O passeio programado para julho marcaria a felicidade de ambos pela vida e contaria com o acompanhamento da filha Anna Maria Malta Cardozo Martins Ferreira, então com 39 anos, proprietária de uma agência de viagens na capital.

Trinta dias foram de preparativos com Francisco chamando a atenção de todos para o cumprimento das suas funções. Na verdade, com 74 anos de idade ele já havia dado poderes para que um dos seus filhos Francisco Malta Cardozo Neto tomasse a iniciativa para administrar as propriedades, uma delas a Fazenda Alpes e a Usina Santa Izabel.

Chegado o dia da viagem, 11 de julho, o casal não sabia que no voo 820 da Varig, considerado um voo regular de passageiros que começava em São Paulo e com parada no Rio de Janeiro para apanhar mais 117 passageiros e 17 tripulantes, antes de fazer a viagem transatlântica para Paris, estariam algumas pessoas bem conhecidas como o velejador olímpico Jörg Bruder e Filinto Müller, presidente do Senado do Brasil, além do cantor Agostinho dos Santos, mais a socialite carioca Regina Leclery, mulher muito bela. Dois jornalistas ainda estavam no vôo – Julio Delamare e Antonio Carlos Scavone.

Era com eles que os empresários araraquarenses Francisco Malta Cardozo, sua esposa Evangelina e a filha Anna Maria também estariam viajando.

O casal ao lado dos filhos durante o evento

Tarde de 11 de julho de 1973; quando faltava apenas um minuto para atingir a pista do aeroporto de Orly, o Boeing 707 do voo RG 820 da Varig fez um pouso forçado sobre uma plantação de repolhos, no vilarejo de Saulx-les-Chartreux, ao sul da capital francesa. Das 134 pessoas que haviam embarcado no Aeroporto Internacional do Galeão, 11 sobreviveram – dez tripulantes e um passageiro.

O voo 820 foi tranquilo até os instantes finais. Os passageiros, seguindo as instruções da tripulação, já estavam em seus assentos, com os cintos afivelados. Ninguém a bordo tinha percebido que um incêndio estava em curso na parte traseira do avião. Investigações oficiais posteriores concluíram que o fogo se iniciou numa cesta de lixo de um dos banheiros, provavelmente por causa de um cigarro aceso ali deixado por um passageiro.

Faltando poucos minutos para o pouso, o fundo do avião, na classe econômica, começou a ser invadido por uma fumaça densa e tóxica. Rapidamente, ela tomou conta de toda a cabine, inclusive o cockpit de comando, na parte dianteira. Os passageiros começaram a desmaiar e o pânico atingiu a tripulação.

Foto ao lado de Tavares de Miranda, da Folha de São Paulo, um dos mais brilhantes cronistas sociais da época

Os pilotos não conseguiam enxergar nem mesmo o painel de instrumentos por causa da fumaça e perderam a comunicação com a torre de comando do aeroporto de Orly. A cerca de 5 quilômetros do destino, foi tomada a decisão de fazer um pouso forçado. Depois de se arrastar por 600 metros, o Boeing estacionou. Dez dos 17 tripulantes que estavam na cabine de comando, ou perto dela, conseguiram escapar.

Um dos passageiros foi retirado com vida pelos bombeiros. Como o fogo se alastrou rapidamente, este acabou matando os passageiros que haviam sobrevivido à fumaça, mas estavam desmaiados em seus assentos. Dos passageiros que haviam embarcado apenas um sobreviveu – o carioca Ricardo Trajano, então com 19 anos, hoje com 68 anos.

VEIO A NOTÍCIA

O avião em meio ao plantio de batatas nos arredores de Paris

Na manhã de 13 de julho, quase 40 horas depois do acidente aéreo no aeroporto de Orly, Francisco Malta Cardozo Neto é chamado ao telefone em sua casa na capital. Era uma ligação internacional informando que seus pais haviam falecido no desastre aéreo que começava a ter repercussão em todo o mundo.

Até então, o acidente focava as ilustres personalidades artísticas e políticas como Filinto Müller, presidente do Senado e o cantor Agostinho dos Santos. Chocado com a morte dos pais e da irmã, Francisco Malta Cardozo Neto passou a notícia aos familiares e amigos, ocorrendo o sepultamento quase uma semana depois por causa da burocracia praticada na liberação dos corpos. Malta Cardozo, Evangelina e Anna Maria foram sepultados em São Paulo no Cemitério da Consolação.

Ao final de quase dois anos os bens deixados pelo casal foram destinados a partilha entre os filhos: a Fazenda Alpes ficou para Francisco Malta Cardozo Neto e sua esposa Vera Salomão Malta Cardozo, além de suas irmãs e sobrinhos os quais posteriormente saíram da sociedade. Em 2013 o herdeiro acaba falecendo e a propriedade passa a ser administrada por seu filho Francisco Malta Cardozo (Maltinha), diretor da Associação dos Fornecedores de Cana em Araraquara.

Maltinha, ao lado da mãe Vera Salomão Malta Cardozo e as irmãs Evangelina Malta Cardozo e Vera Malta Cardozo Pezzoni

Passados 49 anos, o neto de Evangelina e Francisco Malta Cardozo, entende que a tragédia ocorrida com o voo 820 ainda é cercada por polêmica. O fato é que, diante das causas do acidente, autoridades do setor aeronáutico passaram em 1974 a adotar novas medidas de segurança, entre elas a proibição do fumo nos banheiros. Posteriormente, o fumo seria banido nos aviões.

As terras deixadas por Bento de Abreu Sampaio Vidal, passadas ao seu genro Francisco Malta Cardozo e esposa Evangelina, depois para seu neto e agora administradas por seu bisneto, Maltinha, simbolizam a continuidade de uma história entremeada pela tragédia ocorrida a quase 10 mil km de distância entre Araraquara e Paris.