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Criar páginas ou grupos para falar mal de alguém vira pesquisa de doutorado na Unesp Araraquara

Pesquisa avaliou quase 3,5 mil estudantes entre 11 e 17 anos do ensino público e privado do estado de São Paulo mapeando cyberagressões que vão do envio de mensagens ofensivas e chantagem à criação de páginas fakes para atacar alguém.

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Pandemia transformou o modo de vida dos estudantes

Ofensas, ameaças, humilhações, tentativas de chantagem. Pode parecer estranho empregar palavras tão adultas para descrever áreas mais delicadas do cotidiano das relações que pré-adolescentes e adolescentes travam nos dias de hoje. No entanto, a explosão do uso das tecnologias digitais entre os jovens trouxe a reboque uma intensificação também das agressões e violências que podem ser perpetradas por meios digitais. As chamadas cyberagressões são objeto de um extenso levantamento conduzido por pesquisadores da Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), e que resultou em uma pesquisa de doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Unesp, câmpus de Araraquara.

O GEPEM há décadas pesquisa os problemas de violência que marcam o cotidiano das escolas brasileiras. Líder do grupo, Luciene Regina Paulino Tognetta, que é professora do programa de pós-graduação e especialista em psicologia escolar, diz que diversos países experimentam o mesmo problema. Uma pesquisa da Unesco divulgada em 2019, que ouviu 100 mil jovens em 18 países, estimou que nada menos do que 246 milhões de crianças e jovens sofrem algum tipo de violência escolar. “E os estudos mostram que depois da pandemia, com a volta ao convívio presencial, os problemas de relacionamento se intensificaram”, diz.

Ela explica que a necessidade de manter crianças e jovens isolados em casa e longe dos espaços escolares durante a pandemia gerou um movimento de reinvenção das dinâmicas por parte das instituições educacionais, que adotaram as ferramentas digitais como único meio para ensino e convivência e se tornaram, em suas palavras, “escolas sem paredes”. Esta reinvenção, por sua vez, transformou também o modo de vida dos estudantes. Afinal, com a interdição dos pátios escolares, sobrou apenas o espaço virtual para que eles pudessem conviver e se divertir uns com os outros.  E, se o intervalo de tempo em que se podia conviver com os colegas no ambiente físico da escola era necessariamente limitado pelos horários de funcionamento, no mundo virtual é como se a escola não fechasse nunca, e o pátio de recreio estivesse sempre aberto. “Não há mais como pensar as relações interpessoais na escola sem pensar nas cyber-relações”, analisa Tognetta. “E, mesmo antes da pandemia, os depoimentos dos alunos e alunas já indicavam que não havia como negar as cyberagressões, visto o caráter virtual cada vez mais presente no cenário das relações no mundo em que vivemos”, diz.

Essas constatações serviram de motivação para a pesquisa de doutorado do professor de educação física Raul Alves de Souza, que é integrante do GEPEM. Intitulada “Cyberagressão e pró-socialidade entre adolescentes”, a tese foi defendida em abril.

Utilizando-se de questionários, a pesquisa coletou dados de 3.469 estudantes do estado de São Paulo, dos quais 1.991 pertencem à rede pública de ensino e 1.478 à rede privada, com idades entre 11 e 17 anos. Nos questionários, Souza apresentou aos alunos 15 exemplos de ações classificadas como intimidadoras. As condutas destacadas variavam desde o simples ato de “enviar mensagens que ofendem” até ações mais elaboradas, tais como “usar fotos íntimas para chantagear alguém”, “hackear as contas de redes sociais de outra pessoa” e “criar um perfil fake para atacar ou humilhar alguém”. No questionário, o estudante era convidado a responder se, nos últimos três meses, havia testemunhado alguma destas ações, se havia sido objeto delas ou mesmo se havia sido o autor dos ataques (veja a íntegra dos resultados abaixo).

A ação mais prevalente, segundo a análise dos dados, foi a de “enviar mensagens ofensivas”. Em seguida, vieram  “excluir uma pessoa, sem que ela queira, de uma rede social ou grupo porque não se gosta dela”, “ameaçar alguém por meio de mensagens na internet, nas redes sociais ou em situações de jogos online”, e “insultar ou zoar alguém por conta do seu tipo físico”.

Os dados mostraram que havia uma maior prevalência de alunos de escolas particulares, na comparação com alunos de escolas públicas, em nada menos do que 11 das 15 situações pesquisadas. E estudantes de escolas privadas relataram também chances maiores de presenciarem violência virtual em 10 das 15 situações. “Esse dado chama a atenção pois, em geral, é a escola pública que é mais associada à violência”, diz Souza. Uma possível explicação está no fato de que estudantes de escolas particulares tendem a encontrar maior facilidade para acessar a internet, além de disporem de conexões de qualidade maior. À pergunta “você tem computador em casa?”, apenas 2,1% dos estudantes da escola particular responderam que não, em comparação com 47% dos estudantes da escola pública. E indagados se possuíam seu próprio celular, 2, 22% dos alunos da escola particular responderam que não, contra 11,5% da escola pública. Além disso, estudos sobre o uso de internet no Brasil consultados por Souza mostram que 60% dos brasileiros desconectados da internet pertencem às classes D e E, enquanto  as mesmas classes representam apenas 8% da população definida como plenamente conectada no país.

DIFERENÇAS ENTRE MENINOS E MENINAS

Segundo Souza, alunos de escolas particulares apresentam três vezes mais chances de se engajarem em ações do tipo “enviar mensagens que ofendem” do que estudantes de escolas públicas. Em outras categorias, como “ameaçar alguém por meio de mensagens na internet, nas redes sociais ou situações de jogos online”, “criar páginas ou grupos para falar mal de alguém” e “‘cancelar’ uma pessoa por ter condutas ou opiniões diferentes”, os alunos de escolas privadas alcançam o dobro da prevalência na autoria, se comparados aos seus pares de escolas públicas.

Quando se leva em consideração o gênero dos respondentes e a autoria das ações intimidadoras, diz Souza, é possível constatar que meninas apresentam mais do que o dobro de chances de apresentarem o comportamento “Criar páginas ou grupos para falar mal de alguém.”   Já no quesito “enviar mensagens ofensivas”, as meninas apresentam  prevalência de autoria 49% menor em relação aos meninos. E os rapazes apresentam uma prevalência 46% maior, em comparação às meninas, quanto à ação de “insultar ou zoar alguém na internet por seu tipo físico”. (Por Aline Vessoni)