Usina Maringá: história de promessas, dívidas e golpes sobre fornecedores de cana

Seis anos após paralisar as atividades da Usina Maringá em Araraquara, o empresário Nelson Afif Cury é obrigado a conviver com o sentimento de dor dos fornecedores que lhe entregaram a cana e não receberam. Alguns guardam como pagamento o simbolismo de cheques sem fundos; outros já morreram num longo caminho de seis ou sete anos, levando na bagagem o suor do trabalho e a perversidade da lei que sustenta os poderosos.

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Nesta edição, o advogado Pedro Vinha Júnior que representa cerca de 30 agricultores em um universo de R$ 15 milhões que lhes são devidos, narra o desespero desta gente simples, de quem o usineiro teria se aproveitado, até mesmo da baixa escolaridade e inocência por serem homens simples do campo, recebendo cana plantada, colhida, e sem lhes pagar, encontrando para isso brechas na justiça e se livrando de penalidades. Há casos em que famílias tiveram que mudar o rumo dos seus negócios para sobreviverem.

A realidade vista mostra, infelizmente, que ainda vemos o Brasil como um país que se destaca por inversão de valores, preconceitos e direitos que são postos em prática para sustentar privilégios de quem dispõe de recursos e encontra o amparo da lei. Os rastros do empresário de acordo com o Escavador Brasil, somam centenas de processos.

O agricultor Aparecido Timpani faleceu e não recebeu cerca de R$ 200 mil da cana retirada pela usina em sua propriedade. A família ainda discute na Justiça o que tem de receber do dono da usina.

A HISTÓRIA

De propriedade de Nelson Afif Cury, a Usina Maringá por muitos anos atuou na fabricação de álcool e açúcar na região de Araraquara. A empresa, segundo o advogado dos fornecedores Pedro Vinha Filho, encontra-se com suas atividades paralisadas desde 2013 deixando débitos de toda natureza pendentes de pagamentos. Cury, além das dívidas, tem deixado um caminho de tristeza em muitas propriedades que não conseguiram sobreviver pelo não pagamento das safras de cana-de-açúcar que foram trabalhadas com dedicação por famílias de pequenos produtores, por pelo menos dois anos. Só com Pedro Vinhas, seu advogado, os fornecedores aguardam receber mais de R$ 15 milhões.

Os produtores no período entre 2011 e 2013, firmaram contratos com a Usina Maringá, em que se comprometiam vender sua produção de cana-de-açúcar ou arrendar suas terras em troca de valores variáveis.

João Floriano, pequeno produtor, entregou sua cana a Cury e não recebeu. Diz que só não passou fome porque gastou suas economias até se recompor na lavoura

Na época, a usina teria se aproveitado da confiança pela qual produtores, homens  simples do campo, entregaram toda produção sem que ela cumprisse com suas obrigações, isto é, tudo que foi produzido pelos plantadores acabou sendo utilizado pela usina sem o devido pagamento.

A dívida da Usina Maringá com todos os credores segundo estimativas, atingiria num primeiro momento um valor altamente expressivo. Só o escritório de advocacia Vinha e Vinha que representa mais de 30 destes fornecedores, afirma que a dívida reconhecida de seus clientes, passaria dos  R$ 15 milhões.

Em 2014 uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), visava pagamento de funcionários que ficaram durante meses sem receber. Segundo o órgão, a empresa além de não ter pagado os salários dos trabalhadores, entregou a eles  cheques sem fundos. A usina foi condenada por essa prática em outra ação movida pelo MP. Na ocasião, o procurador Rafael de Araújo Gomes afirmou que “o esquema societário do grupo responsável pela usina e a forma como ele é conduzido cumprem com a utilidade de permitir a blindagem patrimonial da família de Nelson Afif Cury, proprietária da Usina Maringá”.

Cheque sem fundos para pagamento ao fornecedor Serafim de Freitas Caires em 2013. Seis anos depois o agricultor está acamado e com problemas de saúde, consequências de uma queda quando quebrou o fêmur. O cheque em questão foi dado pela Farm Indústria e Agro Pecuária que faz parte do Grupo Diné que pertence a Nelson Cury.

Na época a usina alegava em síntese passar por dificuldades financeiras decorrentes de políticas públicas do setor e teria se valido de um modelo de justiça no Brasil que ainda cria inúmeras brechas para devedores, em especial com a abertura de empresas de fachadas para esconder o patrimônio.

Segundo apurado, Cury estaria vivendo em Ribeirão Preto, em bairro nobre, sem alterar seu padrão de vida, seguindo muito bem financeiramente, enquanto fornecedores como Romualdo Luiz Vanalli Polez espera receber cerca de R$ 2,5 milhões por duas safras entregues na Maringá (2012/2013). Romualdo diz que conseguiu sobreviver ao baque financeiro vendendo suas criações, implementos agrícolas e ainda fazendo financiamentos de crédito rural e que até hoje não conseguiu sanar suas dívidas. Ele tem consigo os cheques sem fundos dados pela usina na tentativa de ludibriá-lo.

MORRE O FORNECEDOR

João Floriano é um dos pequenos produtores que afirma que só não passou fome, porque gastou todas suas reservas financeiras: “Como sobreviver se não te pagam o trabalho de um ano inteiro? Foram anos muito difíceis, onde até hoje estamos tentando nos recuperar” – afirma o fornecedor que também guarda uma série de cheques sem fundos recebidos da Maringá. Ele espera receber ainda cerca de R$ 50 mil.

Segundo fontes ligadas ao setor canavieiro, um fornecedor que também não recebeu por sua safra, adoeceu diante das dívidas que batiam à sua porta e que sua esposa teve que abandonar o sítio e arrumar emprego na cidade como faxineira para assim tentar pagar algumas contas e colocar comida na mesa. Ele morreu sem receber, segundo essas fontes.

Dor e sofrimento batem à porta de Serafim que após atravessar o tempo trabalhando, se vê postado em uma cama sem que a Justiça possa lhe amparar

Também um caso que chamou a atenção até mesmo de outros fornecedores é o de Serafim de Freitas Caires, hoje com 93 anos e acamado. Em 2013 ele caiu e quebrou o fêmur, necessitando de cirurgia e cuidados especiais; ele também não recebeu sua safra naquele ano, tornando a sua situação ainda mais difícil. Aposentado e recebendo apenas um salário mínimo, não dava sequer para pagar o plano de saúde. Sua única filha Amélia Caires Ribeiro, 75 anos, disse à reportagem que não conseguia pagar uma cuidadora, pois o dinheiro não dava e o que recebiam eram apenas cheques sem fundos. Sem dinheiro e tendo que cuidar do pai não conseguia trabalhar e nem cuidar de seu sítio para a próxima safra. Ainda hoje ela faz tratamento para a cura de síndrome do pânico e também para a distensão nos dois braços que adquiriu devido ao peso dos cuidados com o pai.

Em 2016, morreu o fornecedor Aparecido Timpani deixando para seus familiares a missão de receber cerca de R$ 200 mil referente à safra de 2013 que a Maringá teria usurpado. Sua esposa Eva Timpani conta que na época, cada vez que Aparecido ia até a usina para tentar receber, voltava com cheques que nunca foram pagos. “Tempos difíceis, fazíamos o máximo em economia, afinal ainda tínhamos que comprar mudas, fertilizantes, preparar a terra para a próxima safra, sem termos recebido nada do ano anterior”- lembra.

O advogado Pedro Vinha Filho vem defendendo os fornecedores de cana que se sentiram lesados pelo empresário Nelson Afif Cury. Para ele, os problemas da Usina são reconhecidos por todos, mas no entanto, não se observa prioridade aos produtores rurais, uma vez que já houve pagamento para cooperativas de créditos, bancos, etc, sem que houvesse nenhum pagamento aos fornecedores

Argumenta também que um suposto amigo do filho de Cury procurou por sua filha afirmando que eles não receberiam porque não davam problemas, “os fornecedores não procuram a Justiça, daí ele não tem porque pagar”- afirmava. Então ofereceu seus préstimos em intermediar o recebimento dos cheques mediante pagamento a ele de 20% do total da dívida. “Achamos melhor não entregarmos os cheques a ele, mesmo depois de apurarmos que ele frequentava a casa dos Cury; confiamos que a Justiça cumprirá o seu papel de nos devolver o que eles nos tomaram”- afirmou ela.

Na época da bancarrota, Luiz Eugênio Ferro Arnone (Geninho), era presidente da Canasol e disse em entrevista veiculada em 2014 no jornal O Imparcial, que fez tudo o que podia para tentar amenizar a situação dos fornecedores, mas em vão. Ele mesmo entregou sua cana para a Usina Maringá e segundo consta, até hoje também não recebeu o acordado.

EGIDIO MESTIERI

O agricultor Egidio Mestieri com a esposa Luisa passaram momentos dificeis provocados pelo empresário Nelson Afif Cury Filho e sete anos depois, tentam se reerguer financeiramente

Egidio Antonio Mestieri, de 73 anos, já não faz mais ideia de quanto tem para receber da safra de 2012 que entregou e não recebeu; ele guarda um cheque referente a uma parcela no valor de R$ 10 mil que foi devolvido pelo banco por falta de fundos. Além de não receber a safra anterior, Egidio mantinha um contrato com a Usina Maringá, que deveria colher sua cana em 2013, mas como não recebia, não colhia e também não liberava para que ele entregasse para outra usina. Assim, precisou entrar na justiça para que pudesse entregar para outra usina sua safra 2013. A justiça demorou para dar o veredicto e quando saiu a safra já havia terminado. Egidio amargou mais um ano sem receber.

“Em 2012 eu gastei combustível, herbicida, maquinário e não recebi nada. A esposa Luisa Mestieri diz que a família usou toda a reserva que tinha guardado durante anos, então ela e o marido fizeram uma horta para vender verduras e o que pudessem produzir. “Foi muito difícil, principalmente porque tínhamos que pagar o financiamento de um trator, que só conseguimos, porque usamos o dinheiro da aposentadoria” – diz Luisa que ainda espera ser ressarcida.

NOTA DA MARINGÁ

Questionado sobre as pendências financeiras com os fornecedores de cana, representados pelo advogado Pedro Vinha Filho, o empresário Nelson Afif Cury Filho e a Usina Maringá, limitaram-se a expedir uma nota dizendo:

 A Usina Maringá não tem deixado de cumprir com seus compromissos frente aos débitos e credores existentes. Várias demandas têm sido objeto de acordo e o pagamento vem sendo feito de forma parcelada, dentro das condições que a empresa hoje se encontra.

A Usina Maringá sofreu um grande revés econômico quando foi objeto de forte e desmedida pressão de sindicatos e de mobilização do Ministério Público. Este, por meio de uma ação que julgamos muito dura, penhorou e tornou indisponíveis bens da empresa, além de cana-de-açúcar da usina e de áreas arrendadas de terceiros para o pagamento de dívidas trabalhistas.

Esta atitude retirou dos responsáveis pela Usina Maringá qualquer capacidade de resolver pendências econômicas, bem como de manter ativa a própria estrutura industrial, de moagem e geração de seus produtos energéticos, culminando com o fim de tais operações no ano de 2014.

Apesar de toda esta situação, a Usina Maringá vem cumprindo a contento suas obrigações – cerca de 95% das demandas trabalhistas existentes foram saldadas e finalizadas.

Na sequência, conforme planejamento que é de conhecimento inclusive do Poder Público, os credores deverão começar a ser chamados para os acordos possíveis.

A Usina Maringá pactua da situação dos antigos fornecedores e quer resolver todas estas questões o mais breve possível. Não gostaríamos de estar vivenciando isso. Não fugimos de nossas responsabilidades. Estamos fazendo todo o esforço possível para equacionar estas pendências, pois temos ainda o sonho de retomar a operação da Usina Maringá.

CONTRAPONTO

Luís Henrique Scabello de Oliveira, presidente da Canasol

A Revista Comércio, Indústria e Agronegócio, ouviu também a Canasol, entidade que defende os interesses da classe canavieira na região de Araraquara. Seu presidente Luís Henrique Scabello de Oliveira, que também possui créditos ainda não recebidos da Usina Maringá, afirmou que além da falta de pagamento, a paralização das atividades da usina deixou muitos fornecedores de cana sem opção de entrega de suas safras. “Quando assumimos a Canasol no início de 2015, havia cerca de 150 mil toneladas de cana de pequenos produtores sem usina para moer. Contudo, rapidamente, procuramos as demais usinas que se cotizaram e acabaram absorvendo o excedente.”

Segundo o presidente da Canasol, o empresário Nelson Cury fez diversas ingerências para que os fornecedores formassem uma Cooperativa para assumir a usina, entretanto, à aquela altura a situação da empresa era precaríssima, o que inviabilizaria qualquer iniciativa. “Não adianta a Usina Maringá argumentar que sofreu grande revés econômico. As ações do Ministério Público e dos Sindicatos foram posteriores à entrega das canas pelos fornecedores, de qualquer forma, isso não isenta a responsabilidade de uma usina que moeu a nossa produção, transformou-a em açúcar e álcool, vendeu a produção, recebeu pela venda, mas não pagou pela cana.”

Apesar disso, Luís Henrique mostra-se confiante na Justiça, pois o empresário Nelson Cury possui propriedades e direitos que poderão ser usados para garantir o pagamento das dívidas deixadas pela Usina Maringá.