Benedito Salvador Carlos, o ‘Benê’, com a colaboração de Pedro Scabello conta nesta história que “no começo dos anos 70, quando comecei a andar de motocicleta e fascinado por corridas, conheci gente que já admirava há muito tempo e, naturalmente, me encantavam. Eram pessoas especiais, como ainda o são até hoje para os meus sentimentos e todas envolvidas no mesmo objetivo que era velocidade e corridas ou vice-versa”.
Imagine um grupo de pessoas, adolescentes e adultos, das mais diversas profissões e atividades que se interagiam para o mesmo fim. Então mecânicos, funileiros, técnicos em eletrônica, engenheiros, torneiros mecânicos, comerciantes, comerciários, escriturários, enfim, gente pobre e gente rica que faziam do cotidiano um saudável encontro de uma geração excepcionalmente romantizada e dos portões do IEBA, Fonte Luminosa e Beach Bar seu passeio mais longo. Era uma mistura de motocicletas, pequenos e grandes carros com suas marcas imortalizadas pelo doce aroma de aventura.
Os grupos, penso, se dividiam e identificavam por oficinas e escudeiras. As oficinas eram de motocicletas, carros, autoeletro, eletrônica. As escuderias por afinidades, então Preocupados, Trabuzana e 108 viviam harmoniosamente, principalmente considerando que o indivíduo se juntava à grande turma no objetivo final que era a velocidade. Dessa forma, aos domingos à tarde, estacionavam na Fonte Luminosa, no balão do meio, carros como Corvette, Mustang, Dodge Dart, Galaxies e os imaculados SimcaChambord, GTX, Fuscas, DKV, Gordinis e Alfas, com seus atributos e encantos generosamente cuidados pelos seus donos.
Na minha ótica, saudosista talvez, o foco central desse movimento foram as corridas organizadas pelo Moto Clube Araraquara, na época presidido pelo jornalista Horácio Campos Martinez e os corredores de motocicletas. Isso porque estes ilustres cavaleiros de aço tinham o poder de unir toda aquela comunidade para o mesmo fim.
Então, pessoas como Adolpho Tedeschi e seu irmão José Roberto Tedeschi (Zé Duvilio), que tinham e continuam tendo talento enorme de só fazer coisas bem feitas (Oficina do Nego), se acompanhavam do Neto Dob, Marcos e Beto Placco, Paulo Affonso, Peninha, Valter Merlos, Eduardo Silva (Gordo da Aremachi), dos irmãos da Cideral, Felipe Giansante, Paulo Pecin, José AntonioPecin, Bianchini, Isaac e Carlinhos Fotógrafo. De outro lado, Dario Pires um Ducateiro por excelência, mais Antonio Carlos Silvino (Auto Mecânica Alpha) carregavam Camilinho Dinucci, Adilson e Luiz Mascia, Elias Abi Rached, Zinho Cefaly, Tom (Edison Puccinelli), Adolpho Signini e Nivaldo Papini (faleceu tragicamente no dia 24 de maio).
Tive a oportunidade, no pouco tempo que vivi esta geração, da sua convivência. Penha era diferente, um gênio lúdico. Uma pessoa irresponsavelmente adorável, descompromissada com os reais compromissos, mas encantador na arte da mecânica. Tenho comigo lembranças impagáveis do seu talento e amor pelas pistas. Como piloto teve carreira extraordinária, grandes apresentações, imaculadas conquistas, inclusive sendo bi-campeão paulista de motociclismo, títulos dos quais, tive o prazer de participar correndo (1974) e somente assistindo (1975).
Inesquecível para mim, um duelo memorável com o também extraordinário araraquarense Olimpyo Bernardes Ferreira, o não menos querido Neto Dob, esse senhor, pentacampeão paulista, que hoje brilha no Bicicross, quando lutaram pela vitória na última corrida do campeonato paulista de 1974, disputado em Interlagos, SP.
Minha Yamaha FS 1 quebrou no meio da competição e se de um lado fiquei triste pelo abandono, por outro fui recompensado pelo privilegio de assistir a prova de ambos dentro do miolo do autódromo. Foi uma aula para um jovem sonhador, entre as curvas do sol e do mergulho.
Assisti a tudo, maravilhado com a visão ampla de grande parte do circuito e foi show. Ambos, que eram patrocinados pela Fábrica de Pistões Rocatti (do grande Joaquim) tocavam de maneira irrepreensível. Cada um com seu traçado, com sua marca. Penha andava melhor nas retas, retomava melhor as saí- das de curva, era mais leve, um jokey, usava rusticamente toda potência e conhecimento do seu motor enquanto o Neto era melhor no miolo, mergulhava mais, freiava mais em cima, esbanjava detalhes técnicos e sangrava os joelhos pra acompanhar lado-a-lado o ritmo do campeão. Cada um com sua técnica, cada um com seu jeito, mas, ambos pilotando com tanta emoção que esqueceram do próprio limite do acelerador e partiram para a vitória sem qualquer destemor e a qualquer custo.
Penha como mecânico, foi mais longe. Conhecia melhor um motor de motocicletas que seu próprio corpo. Tinha mais afinidade com a combustão do que com sua própria alma, criava, inventava, dava asas aos seus sonhos, vibrava intensamente quando descobria qualquer novidade que pudesse melhorar o desempenho das máquinas que mexia.
Penha mais parecia uma criança ganhando presente, do que um profissional qualificado. Esbanjava talento, e ao mesmo tempo, era de todo simples, indefeso, menino, despretensioso. Certamente não tinha noção do tamanho de seu conhecimento e da sua representatividade. Certa vez, acompanhei os pilotos Evaldo Salerno e Edivilmo Queiroz nas 500 milhas de Interlagos, (12º colocados no geral) a corrida mais longa e importante do calendário nacional. A Yamaha TD 2 B, foi por ele tão bem regulada durante o sábado para a corrida no domingo, sem surpresas, que nos demos ao luxo de tentar dormir mais cedo dentro do próprio Autódromo. Acontece que isso não foi possível, pois o mecânico – que oficialmente a Yamaha importou para este fim – não conseguia por nada regular a motocicleta que tirava o sono de todo mundo no Autódromo. E lá fomos nós para o Paddock da fábrica. Encostamos na TZ toda conectada, fios para todos os lados, relógios, aparelhos eletrônicos modernos e nada de achar o ponto. Ele, de macacão, com as mãos entrelaçadas, cabelos longos e topete no rosto, todo desajeitado, disse em voz alta e desconcertante: Esse não é o problema! Foi um burburinho geral até que alguém, cansado e tambémconhecedor dos seus atributos, o sugeriu para tentar resolver a pendenga. Ele com todos os seus tiques e trejeitos foi calmamente desconectando todos os fios e quase que em transe partiu para a carburação. De joelhos, colou seu ouvido no tanque da motocicleta e com a mão direita manteve a aceleração numa constante por um longo período, permaneceu assim, como se entrasse e permanecesse untado dentro da máquina. Como um Mozart foi tocando com a mão esquerda nos comandos do ar, da gasolina e, Run… , Ruuuunnn,……..Ruuuuunnnn…..Ruuuuuuunnnnnn…. De repente o conta giro foi batendo no vermelho e o motor já estava afinado. Sem maiores alardes, acelerou mais um pouco em êxtase e desligou o motor. Recebeu, pelo semblante, um discreto obrigado do Nissei e fomos nós, afinal, dormir. Mais ainda: melhor sorte poderia ter tido o Coopersucar FD 01 se ele acreditasse que o irmão Fittipaldi mais velho falava sério em tê-lo na Fórmula 1.
São histórias, lembranças, velhas lembranças latentes, ainda presentes na minha alma. São saudades de um gênio, saudades de uma geração, saudades destas pessoas. Saudade de uma época tão generosa que o tempo, sorrateiramente, vai colorindo poeticamente.