Chão de terra batido caído em direção a oeste, quatro eucaliptos fincados suportando o peso do que se chamava de travessão. Não havia rede e o vento zunia fazendo um som agudo e sibilante que atravessava frestas por entre ramas de árvores e bananeiras. Por ali é que os “tizius” se ajeitavam e sobre cinco pulos, cantavam a semana toda na estação chuvosa de novembro a março, como a predizer que domingo a Academia ia jogar. Para os meninos pobres de pés no chão, olhar aquele Chapadão do São Geraldo era se envolver nos sonhos do belo Maracanã. Descalços, corríamos naquela chapa quente, sem temor das bolhas e unhas perdidas no bater do capotão ensebado por culpa do “João do Açougue”.
O São Geraldo era um pedaço do céu na ladainha desencontrada do Padre Armando que alertava nas missas – primeiro a igreja, depois o futebol.
Bom mesmo era o footing das quermesses que o velho Magrini, pedreiro competente, ajudava a montar, e pelos corredores afunilados por garotos ainda, as mocinhas passavam sonhando entrar no Galeto ao Primo Canto, da Família Perez, no momento em que o Trio Marabá cantava Noche de Ronda; e quantos dos que se esfolaram no Chapadão não prolongaram seus passos até os pés do santo adorado pra dizer sim à futura e adorada esposa, pois como dizia o padre na hora do casamento: a Academia é uma extensão da igreja…
A ESCOLA QUE SE TRANSFORMOU EM ACADEMIA
Era por um dos bairros mais antigos da cidade que o ainda jovem treinador Dumont, circulava sempre em busca de garotos que poderiam compor uma equipe de futebol. Ele era muito respeitado e suas ações na preparação do time, davam aos jogadores confiança e amor à camisa da Academia.
Ao bom boleiro que se preze, qualquer lugar que havia uma bola rolando era um campo como se fosse o Maracanã, mesmo que surrado, sem grama, esburacado e com terra. Poderia ser tênis, chuteira, descalço e sem luvas para guardar o gol. Para um menino entre 10, 12 anos, jogar bola era algo indispensável, não importando a maneira como fosse. Foi assim que esses meninos cresceram e o amor à bola era significativo, até surgir, em 1965, oficialmente, a Academia do São Geraldo.
Na época, o bairro do São Geraldo contava com dois times, o Corinthians e o São Geraldo Futebol Clube, este tendo um elenco juvenil. A garotada sempre almejava chegar ao time principal do bairro. Mas, muitos desses meninos viram que não teriam chances de chegar ao primeiro time. Foi assim que um grupo de garotos saiu do São Geraldo FC para fundar a saudosa Academia.
“Na época, o nosso grupo disputava o Campeonato Juvenil. Com o passar dos jogos, percebemos que não conseguiríamos chegar ao time principal do São Geraldo. Então, decidimos sair do São Geraldo para formarmos uma nova equipe para a disputa de jogos na região e Amadorzão da cidade. Daí surgiu a ideia de fundarmos a Academia do São Geraldo, tendo como primeiro presidente Adão de Souza, que ajudou na compra dos uniformes, menos chuteira”, contou Carlos Roberto Marques, o Pezinho, primeiro técnico da Academia, meses antes do seu falecimento no Mato Grosso.
Pezinho tinha a mesma idade que os garotos na época, mas não tinha intimidade com a bola. Ele gostava muito de acompanhar e administrar as coisas. E, por unanimidade, se tornou o técnico logo de cara. “Então, decidimos treinar e mandar os nossos jogos no campo do “Chapadão” (era localizado na Rua Comendador Pedro Morganti, próximo ao Piscinão). Revezávamos o campo com o São Geraldo FC e nunca tivemos qualquer problema ou rivalidade com eles”.
O vereador Carlos Alberto Manço sempre teve um carinho muito grande pela Academia São Geraldo; foi com a votação no bairro e apoio dos atiradores do Tiro de Guerra que ele chegou à Câmara Municipal e para manter as raízes no São Geraldo, o vereador continuou dando todo apoio ao time de futebol onde desfrutava de muita simpatia. Certa vez Manço disse em uma reunião de eleitores no bairro: “Uma das coisas que me prende no São Geraldo é o time de futebol da Academia e os incontáveis amigos que consegui criar por aqui”.
Assim começou a história de mais um grande time de nossa cidade. Dos treinamentos à disputa de torneios amistosos, a Academia do São Geraldo foi conseguindo seu espaço no esporte amador. Em um dos jogos emblemáticos, Pezinho meses antes de falecer, recordou um que ficou marcado em sua memória. “Na Vila Xavier havia um time chamado Bela Vista, equipe de respeito e que era excelente. Nesta época o Bela Vista estava com cerca de 38 partidas invictas. Então marcaram um jogo contra nosso time no “Chapadão”. Ganhamos de 2×0. Quinze dias depois fomos jogar na Vila Xavier, próximo ao Tiro de Guerra. Ganhamos de 3×1. Depois desse jogo, eles decidiram nunca mais jogar contra uma equipe jovem (risos)”.
Outra coisa quase típica que acontecia em jogos amadores, era o polêmico envolvimento que os árbitros tinham com os times da casa, coisa que a Academia sentiu na pele jogando um amistoso em Silvânia contra uma equipe local. “Estava com mais de 60 minutos do segundo tempo e o árbitro, obviamente, comprado”. O adversário conseguiu virar o placar e os jogadores da Academia tiveram que sair correndo de campo por tamanha confusão.
Naquele ano (1968), a Academia disputou o Torneio Início e a divisão de acesso ao Campeonato Amador. Além da equipe sãogeraldense, participaram dos dois torneios, Flamengo de Vila Furlan, Ipiranga, IV Centenário, Bandeirantes, Bela Vista e Internacional da Vila Velosa. Pelo Torneio Início, a Academia não tomou conhecimento dos adversários e foi campeã sem contestação: aplicou 3×0 na final contra o Ipiranga, jogo disputado no Estádio Municipal que estava lotado.
Zinho fala que “naquela época, fosse no Chapadão ou no Estádio Municipal, em todos os jogos as pessoas compareciam. Era algo impressionante, coisa que não acontece mais hoje em dia na cidade. Foi bom ter vivenciado tudo aquilo naquele tempo, onde havia mais amor e respeito”.
Com o fim do torneio, as atenções ficaram voltadas para o Campeonato de Acesso ao Amadorzão. O técnico Dumont era quem comandava aquela equipe vibrante e cheia de vontade rumo ao sonhado título para a Primeira Divisão. Sem novidades, o time e da Academia manteve a regularidade durante todo o campeonato e chegou à final contra o Flamengo de Vila Furlan, segundo colocado do campeonato. Das tradicionais decisões que aconteciam no Municipal, esta foi realizada na Fonte Luminosa, casa da Ferroviária.
PARA ELES, TUDO ERA UMA FESTA
Era no carnaval que eles se juntavam para o jogo entre Homens e Mulheres no Chapadão do São Geraldo. Hoje só resta saudade daqueles bons tempos.
No começo era Ditinho. O Ditinho do São Geraldo, depois em meio às brincadeiras dos colegas ficou “Ditinho Saravá”, nome que se transformou em lenda no futebol amador da cidade por ter ajudado na fundação da Academia.
Lateral-direito, às vezes primeiro volante, Ditinho era um dos grandes destaques da equipe, mostrando muita habilidade com a bola nos pés. “Lembro-me de quando era garoto e, com os meus amigos, pulávamos em casas para pegar laranja. Em seguida, íamos vender na Fonte Luminosa. Com o dinheiro conseguimos comprar o nosso primeiro jogo de camisas e eram os uniformes na cor azul celeste da ADA”.
Querendo ou não, a finada Associação Desportiva Araraquara teve parcela de contribuição para o nascimento da Academia. Com os uniformes, os garotos desfrutaram da bola em seu “Chapadão” sem se preocupar com o que vestiam. O passar do tempo levou o uniforme a ter também o branco com tom avinhado, o que não perdia o charme.
Luiz Delfino (Zinho), jogava na meia-direita; aos 10 anos, frequentava os campos que havia perto de sua casa se inspirando nos jogadores dos times da capital e na Ferroviária, pois acompanhava os jogos na Fonte. Atuou pelo Santana e foi campeão juvenil. Em 1966, jogando no Bandeirantes, foi convidado a participar da Academia. Sem dúvida, a Academia tinha um time muito bom, o melhor que joguei. A amizade criada desde aqueles tempos permanece até hoje e é sempre bom reencontrar velhos amigos. Ainda jogo bola com o Noé (ex-atacante da Academia) até hoje”.
E o ano mais marcante daquela geração, sem dúvidas, foi o de 1968, quando a Academia explodiu na cidade.
REENCONTRO OCORRE MUITOS ANOS DEPOIS
Da safra dos anos 60 e 70, muitos dos atletas ainda continuam a residir no bairro; por este pedaço de chão se apegaram e lembram de antigas histórias.
Mario Corne, goleiro da Academia, sentiu o que era disputar uma final do Amador com casa cheia e justamente contra o time do Flamengo. “Quando cheguei na boca do túnel e olhei a arquibancada, virei para o Dumont e falei para colocar o Osmar (reserva) no meu lugar. Comecei a ficar trêmulo”, relembra o arqueiro. Apesar do nervosismo, ele foi de extrema importância à equipe no decorrer do campeonato.
Outro fato peculiar foi do atleta que jogou duas partidas no mesmo dia: de manhã daquele domingo, José Noé da Silva, o Noé, jogou futsal; à tarde disputou a final pela Academia. “Na partida de futsal, joguei 60 minutos; depois 90 minutos, mais prorrogação e pênaltis contra o Flamengo”, relembra.
No jogo final, o Flamengo saiu na frente e o placar foi se mantendo até metade do segundo tempo, quando Zinho foi decisivo. “O Dumont havia acabado de fazer uma substituição, colocando o Cal. Ele deu o passe para mim, após um cruzamento da direita, fintei o marcador e chutei forte para empatar o jogo. A decisão ainda não tinha terminado para nós”, conta Zinho.
Nivaldo Silva, o Cal, ainda era um dos mais novos do time. Com 17 anos, sentia a pressão de um Campeonato Amador. “Entrei no segundo tempo e consegui dar o passe para o gol do Zinho. Foi naquele ano que entrei na Academia e saí de lá com dois títulos”, relembra o jogador.
A decisão se encaminhou para os pênaltis. Sita, que era um dos jogadores mais experientes da Academia, foi o primeiro a cobrar, mas acabou errando, deixando-nos apreensivos. Em seguida, foi a vez de Tonhão, o mesmo que jogou na Ferroviária, e depois no Flamengo. Ele desperdiçou a cobrança. Com um placar de 2×1, a Academia do São Geraldo sagrou-se campeã e conseguiu o direito de disputar o Campeonato Amador de 1969.
Infelizmente, a vida da Academia foi curta na Divisão Especial pois com objetivos profissionais, alguns foram deixando a equipe por falta de tempo e trabalho, outros ficaram desmotivados: o time não foi mais o mesmo, encerrando as atividades em 1970.
TEMPOS DOURADOS DO SÃO GERALDO
Apesar de sua contribuição para o futebol amador da cidade, a Academia inovou no bairro do São Geraldo. Em tempos de carnaval, os jogadores se reuniam para realizar a partida entre Homens x Mulheres, na qual alguns atletas se vestiam de mulher e disputavam o jogo.
“Antes de cada partida, a gente marcava um ponto de encontro e saíamos juntos em uma espécie de desfile pelas ruas até chegar no Chapadão”, relembra Zinho. Após os jogos, a confraternização continuava com churrasco. Mesmo após o término da Academia, os amigos adotaram aquilo como um encontro anual e virou tradição do bairro por mais de 20 anos, durando até o fim dos anos 80.
Os anos se passaram e o que fica é a recordação. A tradição que os bairros tinham com suas festas típicas, foi acabando, tornando monótonas nossas vidas. Dos tempos áureos da infância e do nosso futebol alegre, apenas a saudade se ajeita no passar das horas, na maioria das vezes como fonte de inspiração.
Observação: História originalmente escrita em 2015, extraída do Álbum Lembranças com Pé no Chão dos jornalistas Ivan Roberto Peroni e Rafael Zocco.
