Naquele final de tarde o apito da fábrica soou mais cedo; era possível ouví-lo à distância ecoando pela Vila Xavier afora e parecia até uma coisa combinada do Laurindo com o gerente da Anderson Clayton, o bom alemão que todos chamavam de Sachs.
As passadas mais rápidas eram dos que tinham sido chamados para o primeiro treino do ACCO, o time de futebol montado dentro da companhia. Não era nem quatro e meia. Laurindo como sempre, vestia a camisa branca; era ele o presidente do time; do lado o vice Ballestero, e no centro das atenções, para primeira preleção, o Doca, escurinho respeitado nas rodas de samba que o “Santo Antônio” organizava como chefe da escola “Anjos da Vila”.
E Doca, com a voz sufocada pela rouquidão da garganta, simplesmente dizia: “Butinada não, vai pegá mal e no primeiro ato de expulsão, oh o patrão ne nóis”. O alerta era geral para os colegas.
E no grande círculo se fez então uma pausa para a oração ao Senhor, onde se pedia a graça pelo amor entre todos, ato de respeito ao inimigo, pois vencer seria bom, mas nem de todo o necessário, pois acima de tudo, estava a honra de servir a fábrica que em Araraquara era um orgulho e onde grande parte dos homens sonhava trabalhar.
ERA A INDÚSTRIA DO FUTEBOL
O Acco possuía uma estrutura invejável mantida pela Anderson Clayton & Company, que marcou a vida das pessoas, tanto na fábrica ou representando sua trajetória em campeonatos de futebol. A atividade esportiva envolvia ainda suas famosas “olimpíadas”.
A empresa tem uma grande passagem na vida do brasileiro. Em 1948, a fábrica de óleo vegetal norte-americana foi a primeira indústria a introduzir a margarina no país, sendo detentora da marca Claybom e de outras na época. Além do produto, comercializava também livros de receita e um manual agrícola. Em 1970, quando o Brasil foi tricampeão mundial de futebol, o ACCO desenvolveu um cartão postal com a foto do time canarinho, algo marcante naquele ano.
A partir de 1950 é que a empresa começou a investir no futebol amador, projetando seus times para as disputas dos campeonatos da LAF e os internos, reunindo unidades da Anderson Clayton espalhadas pelo Brasil.
O time de futebol era formado pelos funcionários, mesclado por alguns jogadores convidados. Os treinos aconteciam as terças e quintas, às 16h15, no campo ao lado da empresa. O terreno era localizado na Avenida Industrial com a Rua Professor Dorival Alves, onde fica hoje o residencial Central Park Morada do Sol, na Vila Xavier.
De lá saíram trabalhadores e jogadores que conseguiram colher seus frutos, seja no interior ou na capital, ou os que apenas usaram o ACCO como ponte para seguir outras inspirações ao longo da vida.
LÁ VAI FURQUILHA O NOSSO PONTA DIREITA
O passado e as histórias se misturam no presente. Hoje, o tempo é quem dita o ritmo. Uns continuam, outros se foram há muito tempo. Pegando a foto clássica do time do ACCO, olhando-a, vemos que meio time está na Terra e o restante aguarda a chegada dos outros para matar a saudade daquelas manhãs de domingo.
O ex-ponta-direita e esquerda, Edvard dos Santos, o Furquilha, proprietário do bar Zinho da Sete, fez parte do ACCO e do futebol amador da cidade. Ele também trabalhava no escritório da Anderson Clayton.
“Naquele tempo a gente se inspirava nos grandes craques como Garrincha e Pelé. Ainda pequeno, dizíamos: “Lá vem Garrincha! Passou por um, por dois…”, pensando em ser o mesmo craque que ele era”.
Além do futebol, a amizade ainda perdura. Dos que já se foram, prezamos o respeito. Apesar das idas e vindas, Furquilha recorda um fato inusitado daqueles tempos. “Odairzinho e mais três morreram em um acidente de carro a caminho de Matão. O nosso time não tinha numeração e posição fixa. Então, o Laurindo (técnico) me deu o número que o Odair usava no ataque. Tive que jogar com o número do falecido; fiquei com muito medo naquele dia (risos)”.
Dos jogos memoráveis, Furquilha recorda dois que fizeram a sua alegria, em especial, um que valeu um título para o ACCO. “Não esqueço dos 3×1 sobre o Tamoio, no campo da Usina. Lá era difícil de jogar, a torcida empurrava muito o time deles. Porém, naquele dia desencantei e marquei dois gols. Mas nada se compara ao título que conquistamos em 1971 pelos Jogos Accolinos, contra o time da Lapa, em São Paulo. O time deles era formado, a maioria, por jogadores do Corinthians e Palmeiras. Eram muito fortes. Ganhamos de 1×0 e fomos campeões”.
Durante os Jogos Accolinos, o time de Araraquara ficou instalado no Pacaembú. Como Furquilha fazia parte da diretoria da fábrica, ficou no mesmo cômodo que outros diretores. Certa vez, Furquilha saiu com o restante dos jogadores e eles voltaram além do previsto. “Entrei devagar no quarto e os diretores já estavam dormindo. Fui ao banheiro, escovei os dentes e retornei ao quarto. Quando deitei no colchão, o técnico Laurindo acendeu a luz e falou “Amanhã você vai ser titular e terá que jogar muita bola!” e logo em seguida apagou a luz (risos)”.
HUDSON ROSALINO, O MACACO
Outro que participou dessa aventura foi Hudson Rosalino, mais conhecido como “Macaco”, dentro e fora dos gramados. “Ganhei esse apelido porque, quando era pequeno, subia nas árvores. Um dia minha avó gritou “desce logo daí, seu macaco!” e meus amigos estavam perto. Aí o apelido pegou”.
Hudson jogou apenas as partidas dos Accolinos pelo clube e foi pé quente. “Fui convidado pelos diretores da fábrica para participar daquela edição em São Paulo. Por incrível que pareça, logo de cara fomos campeões. Era algo que a gente não esperava, pois havíamos enfrentado a equipe da Lapa. Tínhamos um excelente time, um dos melhores que a cidade já teve”.
Além de ter representado o Acco, Hudson marcou época em times como o Quitandinha, Americano, Estrela e, principalmente, pelo Paulista, chegando a ser campeão amador. Mas Hudson não era apenas um craque. Mais que isso. Menino de periferia, filho de família humilde, dessas que praticamente não existem mais, pela presteza e atenciosidade com o ser humano. Os valores que hoje são sua marca, expressam a herança deixada pelo seu pai Salviano, que lhe ensinou a trabalhar em meio a ferramentas e graxa, num canto escondido do Quitandinha quando a cidade ainda engatinhava para o desenvolvimento nos anos 60.
Seu futebol vistoso e cheio de alegria, está registrado por todos aqueles que tiveram a felicidade de conviver com um dos momentos mais significativos do nosso esporte amador. Pena que tudo isso acabou, parece ser o fim de um sonho.
O MUNICIPAL FICOU CALADO
Os irmãos Faccio um dia foram ajudar o ACCO a ser um grande time: Tonhão, Torero, Ibaté, Mário e Bial. Mas foi o Mário que deu um susto em todos eles.
Um grande personagem futebolístico da cidade pontuou seu nome na Ferroviária e no Botafogo de Ribeirão: Mário Nelson Faccio. Apesar de ter marcado época nestes times, Mário começou a carreira jogando pelo Expresso em São Carlos. Aos 15 anos, já conquistava o Campeonato Paulista da Série A3 da categoria profissional. Depois disso, a Ferroviária despertou o desejo de contar com ele. Mário não titubeou e aceitou na hora. Atuando com o uniforme grená, teve uma trajetória rápida na zaga afeana, chegando a jogar com os irmãos Bial e Tonhão, coisa rara no futebol. Os outros – Torero e Ibaté – também eram craques. Com uma carreira consolidada, partiu para Ribeirão rumo ao Botafogo, onde foi bem. Mas a sua carreira chegava ao fim precocemente, aos 30 anos.
“Estava em um bom momento, porém, tive uma contusão séria no joelho, um pesadelo na época. O próprio médico do Botafogo me operou e demorei muito para ficar bom. Não sentia mais aquela confiança e decidi retornar para Araraquara. Foi aí que o Acco abriu as portas para mim”.
Proprietário na época do Palácio das Tintas, a amizade conquistada com o pessoal do ACCO fez com que fosse convidado pelos diretores. Aceitou na hora, pois sua paixão era o futebol.
“Foi no ACCO que eu joguei mais tempo na minha vida e só tenho saudades daquela época. Foi uma honra jogar com Candinho (goleiro), Estilingue (ponta-esquerda), Leonel (meia-direita), Coca (lateral-direito) e com os meus irmãos. Na Ferroviária jogamos em três (Tonhão, Bial e eu). No ACCO jogavam os cinco”.
Mário recorda quando eram realizados os jogos da Ferroviária e do amador no mesmo dia. “A cidade ficava dividida. O amador era forte e muita gente acompanhava os jogos. Aos domingos se via o Estádio Municipal mais cheio que a Fonte Luminosa”.
E foi em um domingo desses que algo chocante aconteceu durante a partida em que Mário estava em campo. Em uma dividida de bola, tentou segurar o adversário e, desajeitado, caiu rodopiando, batendo a cabeça muito forte no chão. “Apenas lembro de ter virado pro chão. Acordei no hospital”.
Jogadores foram chegando perto de Mário, que ficou ali, deitado no gramado, inconsciente. O desespero começou a tomar conta dos outros jogadores e a torcida ficou apreensiva, muda. A emoção foi tão forte, que Furquilha e os irmãos de Mário acharam que ele tinha morrido. “Me falaram que o Ibaté ficou me empurrando e caiu no choro pois eu não me mexia”.
Na época não havia preparo com o bem-estar dos jogadores como vemos hoje, ao ponto de ter uma ambulância em campo. As pessoas e os dirigentes não se prepararam e nem esperavam por isso. Pessoas que ali estavam tiveram que quebrar parte do alambrado do estádio para que a ambulância pudesse entrar e levar Mário para o hospital.
“Eu bati a cabeça forte e fiquei desmaiado. Graças a Deus estou bem quanto a isso. Foi um episódio que assustou muito quem estava presente naquele dia no Municipal”.
Hoje, com um futebol mais estruturado e com um poderio financeiro bem maior, o charme ficou perdido no tempo. A amizade hoje gira em torno de negócios. E os negócios vão bem apenas para agentes e empresários. O jogador é pobre de sentimentos. O amor pode acontecer, mas é apenas pelo sucesso e a fama, não pela amizade e o prazer. Hoje, jogador de futebol é uma marca que pode valer milhões. Os que fizeram valer a amizade e o companheirismo as preferem e com toda a razão.