
Nesta terça-feira (09), às 9h12, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), conduzida pelo ministro Cristiano Zanin, retomou o julgamento da Ação Penal nº 2.668 que apura a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros sete réus, na tentativa de golpe de Estado após as eleições presidenciais de 2022. O ministro relator Alexandre de Moraes abriu a sessão da manhã com um voto de mais de cinco horas. Detalhou provas, delações e atos que, segundo ele, configuram crimes contra o Estado Democrático de Direito. À tarde, foi a vez de Flávio Dino acompanhar a decisão do relator. O julgamento será retomado nesta quarta-feira (10), às 9h.
“Vocês esquecem que o Brasil quase volta a uma ditadura que durou 20 anos. Quem perde vira oposição e disputa as próximas eleições. Quem ganha assume e tenta se manter pelo voto popular, e não utilizando órgãos do Estado, coagindo, ameaçando gravemente e deslegitimando o poder Judiciário e a Justiça Eleitoral do seu país, com a depredação da sede dos Três Poderes. Isso não é democracia, não é Estado Democrático de Direito”, disse Moraes.
Entre os acusados estão, além de Bolsonaro, os ex-ministros Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Anderson Torres, o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), o ex-comandante da Marinha Almir Garnier e o tenente-coronel Mauro Cid. Segundo a acusação, todos integrariam o chamado “núcleo crucial” da trama, formado para desacreditar o sistema eleitoral, incitar ataques às instituições e articular medidas de exceção com o objetivo de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
ANÁLISE DAS QUESTÕES
Relator do processo, Moraes iniciou o voto rejeitando as preliminares levantadas pelas defesas dos réus. Entre os questionamentos, estava a validade da delação premiada de Mauro Cid. O ministro reafirmou a plena validade e regularidade nos depoimentos de colaboração premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.
“Ressalto que a própria defesa do réu colaborador, em sua sustentação oral, reafirmou a total voluntariedade e regularidade da delação e afastou qualquer indício de coação”, afirmou Moraes.
Além disso, criticou os argumentos das defesas dos réus sobre possíveis contradições nos depoimentos prestados à Polícia Federal durante a investigação, destacando que a mesma optou por fracionar as oitivas em oito sessões distintas devido à diversidade dos fatos investigados. Para Moraes, não houve contradições nos relatos, mas, sim, uma estratégia de investigação. “Isso beira a litigância de má-fé. Ou não leram os autos ou é litigância de má-fé”, disse.
O relator afastou críticas de que houve manipulação de provas ou cerceamento da ampla defesa diante da quantidade de documentos anexados aos autos. Moraes lembrou que as defesas tiveram cinco meses para se manifestar e não apresentaram nenhum elemento relevante capaz de alterar o processo. “A acusação não imputou nenhum fato base nessas supostas provas e nem o Supremo Tribunal Federal está analisando para eventual absolvição ou condenação.”
Citou ainda a alegação de um advogado de que teria gasto R$ 25 mil para acessar as informações, rebatendo que, caso houvesse necessidade, poderia ter pedido o benefício da justiça gratuita.
Outro ponto contestado pelas defesas foi a participação ativa de Moraes durante os interrogatórios, especialmente no caso do general Augusto Heleno, cujo advogado, Matheus Milanez, reclamou do número de perguntas feitas pelo ministro. O relator, no entanto, rebateu dizendo que seria uma “alegação esdrúxula” e que “não cabe a nenhum advogado censurar o magistrado dizendo o número de perguntas que ele deve fazer”, acrescentando ainda, que a produção de provas suplementares pode, inclusive, favorecer os réus.
Além disso, sustentou que não houve violação ao direito ao silêncio durante os interrogatórios. “Afasto a alegação da violação ao direito ao silêncio do réu Augusto Heleno. Se todos se recordam, se alguém violou o direito ao silêncio foi o próprio réu. Porque o seu advogado pediu que ele respondesse sim ou não, e ele que divagou respondendo. Ele não respondeu a nenhuma indagação feita pelo ministro relator, resguardando assim o seu total direito ao silêncio.”
PONTOS CENTRAIS DO VOTO
Superadas as questões preliminares, o ministro passou ao mérito da ação. Em seu voto, afirmou que “não há dúvida de que houve tentativa de golpe” e que a articulação foi liderada por Jair Bolsonaro. Ficou caracterizada a formação de uma organização criminosa hierarquizada e permanente, com divisão de tarefas, destinada a minar a confiança da população no sistema eleitoral, constranger o Poder Judiciário e tentar reverter o resultado das eleições de 2022.
“Atos executórios esses destinados a, primeiro, atentar contra o Estado Democrático de Direito, pretendendo restringir ou suprimir, mediante grave ameaça, a atuação de um dos Poderes do Estado. Neste caso, o Judiciário. E ainda atos executórios para consumir, por meio de violência ou grave ameaça, um governo legitimamente constituído. Suprimindo a atuação de um dos poderes de Estado, no caso o judiciário”, argumentou o ministro.
Entre os atos executórios citados estão:
Live do dia 29/07/2021, entrevista de 03/08/2021 e live de 04/08/2021 de Bolsonaro para desacreditar e atacar as urnas eletrônicas;
Tentativa, com emprego de grave ameaça, de restringir o exercício do Poder Judiciário, em 7 de setembro de 2021;
Reuniões ministeriais e com embaixadores de julho de 2022;
Uso indevido da PRF no segundo turno das eleições e da estrutura das Forças Armadas para questionar o processo eleitoral;
Elaboração da minuta do golpe apresentada a comandantes militares;
Monitoramento de adversários políticos;
Operações como “Punhal Verde e Amarelo”, “Operação Copa 2022” e “Operação Luneta”;
Reuniões estratégicas após a derrota nas urnas em 2022;
Ataques após as eleições, como o gabinete de crise e os atos de 8 de janeiro de 2023
Tentativa de golpe de Estado em 08/01/2023;
Tentativa de explosão de bomba no aeroporto de Brasília (2022).
O relator destacou ainda provas apreendidas durante a investigação, como a caderneta pessoal com a logomarca da Caixa Econômica, encontrada na casa do general Augusto Heleno, que continha anotações pessoais sobre ações para desestruturar o sistema eletrônico de votação, além de documentos em posse do deputado Alexandre Ramagem que, segundo ele, coincidiam com os registros encontrados com Heleno. Segundo ele, essas evidências mostram que não se tratava de atos isolados, mas de uma estratégia coordenada com base na desinformação sobre o voto eletrônico.
“Não é razoável achar normal um general do Exército, ministro do GSI, ter uma agenda com anotações golpistas. Ter uma agenda preparando a execução de atos para deslegitimar as eleições, o Poder Judiciário, e se perpetuar no poder. Não consigo entender como alguém pode achar normal em uma democracia, em pleno século 21, uma agenda golpista”, disse.
Outro exemplo é a live realizada por Jair Bolsonaro em 29 de julho de 2021, com mais de duas horas de duração, que mostra ao fundo da imagem, um cartaz escrito “voto impresso auditável”.
Também reforçou que a organização criminosa utilizou órgãos públicos para monitorar adversários e atacar o Estado Democrático de Direito e afirmou que a tentativa de golpe não se limitou aos atos de 8 de janeiro de 2023, mas envolveu uma sequência de ataques planejados para manter Bolsonaro no poder.
Segundo Moraes, houve uma clara confissão de unidade de desígnios para a prática de tentativa de golpe militar do dia 8 de janeiro de 2023 feita pelo réu Braga Netto, que mediava a comunicação entre os líderes dos acampamentos. A declaração foi justificada pela delação de Cid e por uma publicação feita por Bolsonaro após a derrota nas eleições, em que o ex-ministro da defesa diz: “Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora.”
DECISÃO DE MORAES
Ao concluir o voto, o ministro Alexandre de Moraes defendeu a condenação de todos os réus por crimes como organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e dano qualificado contra o patrimônio da União, com grave ameaça e prejuízo ao patrimônio público tombado.
No caso de Jair Bolsonaro, além dessas acusações, o relator acrescentou a imputação específica de liderança da organização criminosa, apontando-o como chefe da trama golpista.
O deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), por sua vez, foi responsabilizado por participação em organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
VOTO DE FLÁVIO DINO
Na retomada da sessão, na tarde desta terça-feira (09), foi a vez do ministro Flávio Dino apresentar o voto. Logo no início, ele adotou um tom de equilíbrio, classificando o processo como “um julgamento como qualquer outro” e frisando que todas as etapas respeitaram o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Segundo o magistrado, a condução do caso demonstra “absoluta congruência com as normas legais” e reforça o papel do Supremo como guardião da Constituição.
Dino ressaltou que a ação penal não trata de uma disputa política, mas de crimes contra o Estado Democrático de Direito. Para ilustrar, comparou a imparcialidade do STF à atuação de um árbitro de futebol: “Quando um pênalti é marcado para o meu time, o árbitro é o melhor do mundo. Se é contra, passa a ser o pior. Mas o árbitro e as regras são as mesmas. Aqui não há julgamento de uma posição política A ou B, são conduzidas de modo igualitário”.
Em sua análise, o ministro destacou que atos classificados como preparatórios já configuram ameaça concreta ao bem jurídico protegido, o Estado Democrático de Direito. Ele citou o planejamento da chamada “Operação Punhal Verde e Amarelo”: “O nome não era Bíblia Verde e Amarela, era punhal, e os acampamentos não estavam em portas de igrejas, mas de quartéis. E eu sei que se reza em quartéis, mas também há fuzis, tanques, armas”.
Além disso, também rejeitou as alegações de inconsistência nas delações premiadas, reforçando que não houve contradição entre os depoimentos de Mauro Cid, mas uma narrativa coerente com base nas provas colhidas. “Encontramos um acordo de colaboração válido e suficiente para sustentar um juízo condenatório em face das provas de corroboração”, afirmou.
Ao examinar a participação de cada acusado, Dino acompanhou o entendimento de Moraes sobre a liderança de Jair Bolsonaro na trama, ao lado de Braga Netto. “De fato, ele e Braga Netto dominam essa função, e de todos os eventos narrados nos autos, estão as ameaças às instituições”, disse, mencionando também notas e reuniões oficiais que reforçam a tese acusatória.
Em sua decisão, o ministro acompanhou a decisão de Moraes, mas destacou a diferença de níveis de culpabilidade entre os réus. Para Bolsonaro e Braga Netto, classificou a responsabilidade como “bem alta”, assim como para Almir Garnier, Anderson Torres e Mauro Cid, este último com benefícios resultantes da colaboração premiada. Já em relação a Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem, Dino afirmou que a participação é de “menor importância”. No caso específico de Heleno, observou que sua ausência em determinadas reuniões indicava “menor eficiência causal” dentro da organização criminosa.
O julgamento foi encerrado às 17h03 e terá continuidade nesta quarta-feira (10), em sessão ordinária. Seguirão os votos dos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Caso se forme maioria pela condenação, o STF passará à dosimetria das penas, que podem ultrapassar 40 anos de prisão. (Por Giovanna Sfalsin / Correio Braziliense)