Uma cidade emergente que não tinha mais que 55 mil habitantes também parecia se encantar com os Beatles que sacudiam nos anos 60 um mundo de intensa transformação. Jovens buscavam seguir os mesmos projetos e viam no rock a forma rápida para encurtar este caminho. Em Araraquara, nascia o grupo The Blue Devils, amparados pelo apoio da Casa Barbieri, da Rádio A Voz da Araraquarense e um número infindável de fãs.
O tempo passa, porém, 54 anos depois tudo o que ocorreu parece estar bem vivo nas lembranças dos amigos Juraci Brandão de Paula (Jura) e Aparecido Morales Calejon (Cidão). Eles também são os únicos que sobraram dos companheiros que formavam um dos grupos mais agitados da época: The Blue Devils, ou simplesmente Os Diabos Azuis, em pleno regime militar dos anos 60.
A HISTÓRIA DO GRUPO
“Em 1964, a Casa Barbieri, tradicional no comércio varejista, que ficava na Rua 9 de Julho, esquina com Avenida Duque de Caxias, decidiu lançar o Carnê Barbieri de Utilidades, como parte de suas estratégias de venda”, relembra Juraci, na manhã de 27 de agosto de 2018.
De fato, os clientes e o público em geral que adquirissem o carnê da loja, pagavam um determinado valor mensal, concorriam a prêmios e no final recebiam o valor correspondente ao total das parcelas pagas em produtos da sua livre escolha na Casa Barbieri ou na Tendinha, uma loja anexa à Casa Barbieri.
A estratégia também consistia em fazer shows gratuitos ao público em Araraquara e outras cidades da região como Matão e Ibitinga, acontecendo diversas atrações, farta distribuição de prêmios e sorteios de brindes e brincadeiras de palco conduzidas pelo palhaço Paçoca.
Era preciso então a participação de um grupo musical nos shows organizados pela Casa Barbieri. “O Ciganinho (José Carlos Arone), foi convidado a montar tal grupo que seria contratado pelo carnê, com o desafio e a responsabilidade de conduzir a parte musical. Era preciso desenvolver um repertório para tocar nos shows, acompanhar as atrações musicais (cantores/cantoras) e também selecionar, ensaiar e acompanhar calouros. O Ciganinho falou comigo que topei na hora o desafio. Em seguida convidamos o Luizinho (Luiz Peres Flores) e o Foguinho (Lindomar)”, recorda Juraci.
Coube a ele ainda convidar também um grande amigo, o Cidão (Aparecido Morales Calejon), para integrar o grupo. O Cidão e ele já tocavam na Banda Infanto Juvenil de Araraquara, sob a regência do inesquecível maestro Olávio Fellippe.
“Completado o time, começamos os ensaios na Rádio A Voz da Araraquarense, que também pertencia ao grupo Barbieri. A emissora funcionava num casarão na Avenida Feijó, nº 534, entre São Bento e Padre Duarte, onde hoje é a entrada e saída dos caminhões que abastecem o Supermercado Extra”, diz Juraci.
De fato, o local era um terreno enorme com o casarão na frente e nos fundos muitas árvores frutíferas. Entre elas jabuticabeiras antigas e várias salas. Uma dessas salas virou o local de ensaio do grupo que ainda tinha à disposição a discoteca da rádio e a divulgação do grupo.
“Como o Ciganinho, o Luizinho e eu tocávamos também no grupo musical contratado há anos pelo Clube Araraquarense e liderado pelo saxofonista Pedro Bonini, usamos o palco e o salão do Clube para fazer as nossas fotos de divulgação. A sede do Clube naquela época era na Rua São Bento 794 – centro, atual Palacete da Esplanada das Rosas, que abriga a Secretaria Municipal de Cultura. Ao seu lado, tínhamos o antigo Teatro Municipal, demolido em 1966 para a construção do prédio onde está a Prefeitura Municipal”, explica o músico.
Assim nascia em 1964 o The Blue Devils, o primeiro grupo musical de Araraquara, de “rock-and-roll’ e “twist”, na época chamada música jovem, com a seguinte formação: Guitarra solo e líder, Ciganinho (José Carlos Arone); Guitarra base, Jura (Juraci Brandão de Paula); Saxofone, Cidão (Aparecido Morales Calejon); Baixo, Foguinho (Lindomar), posteriormente substituído por Billy (Paulo Cortez) e Bateria, Luizinho (Luiz Perez Flores).
Devidamente formado, o grupo adotou como prefixo para abertura dos shows a música Bolha Assassina (The Blob), que serviu de trilha sonora para o filme americano do mesmo nome de 1958, estrelado pelo então desconhecido Steve McQueen. No Brasil a música foi gravada pelo grupo The Bells e vale a pena ouvi-la no YouTube – The Bells – Bolha Assassina – (The Blob). O araraquarense The Blue Devils apresentava o mesmo arranjo.
CRESCE A POPULARIDADE
“Então passamos a viver uma fase muito boa, com muita alegria, viagens e shows pela cidade e região, integrando o “Big Show Carnê Barbieri de Utilidades” – CBU, como ficou conhecido”, diz Juraci.
Além do “The Blue Devils”, integrava a caravana do Carnê o animador Denisar Alves, o locutor comercial Dorival Falcone, a secretária de palco Maria José da Silva Bento (Zezé) e o diretor geral Roberto Barbieri.
Neste mundo de boas recordações, afirma Juraci, em Araraquara os shows eram realizados à noite no Cine 9 de Julho, localizado na Rua 9 de Julho nº 1.433, entre as Avenidas Bandeirantes e Mauá. “Era muito prazeroso tocar para o público animadíssimo que frequentava e superlotava o cinema”, argumenta o músico.
Nas cidades da região o público presente também era igualmente muito grande e animado. “Penso que na cidade de Matão para muitos jovens, as noites de quarta-feira não eram dia de aula, mas sim de ir ao Big Show Carnê Barbieri de Utilidades”.
Mais adiante, diz o músico: “Lembro-me que muitos estudantes de uniforme e livros embaixo do braço faziam parte da plateia que lotava as dependências do Cine Yara, localizado na confluência da Avenida 7 de Setembro com a Rua Rui Barbosa, bem na esquina da Praça Dr. Leônidas Calígula Bastia, onde funciona atualmente a Montreal Magazine. Até os corredores do cinema ficavam tomados pelas pessoas sentadas no chão”, conta Juraci.
Outro detalhe que ele lembra é de que após o show, toda a equipe formada pelos músicos, cantores como os garotos Rubens Romagnoli, Claudio Soranzo, além do jovem Osvaldo de Souza entre outros calouros, palhaço, técnicos, animador, locutor, secretária, diretor e outros, dirigíamos todos para o ônibus da caravana, sempre parávamos num restaurante de estrada para um breve lanche e seguíamos no retorno para Araraquara.
No dia seguinte no período da tarde, já estávamos na nossa sala de ensaio para tirar novas músicas e responder as correspondências recebidas da moçada.
Foi um tempo muito bom, enquanto durou… Afinal tudo tem um fim, mas a vida segue rumo a novos desafios que precisam ser vencidos.