Coincidência ou não, a morte do artista Ernesto Lia e alguns dias depois do compositor Luiz Vieira, no Rio de Janeiro, nos leva a reviver uma situação curiosa ocorrida no final dos anos 70. Os tempos até que poderiam ser de paz, de uma cidade aparentemente romântica, curiosa, predestinada a se envolver em conceitos e modismos, transformação absoluta de gestos e costumes.
Araraquara de fato estava renascendo para um outro estilo de vida naquele 1978 ou 79 e em meio a este período de mudanças estava Ernesto Lia focado em fazer parte do Anuário Internacional de Artes, editado na França e impresso no Japão, com pelo menos cinco páginas e um milhão de exemplares. Ernesto era o expoente máximo da arte paulista e brasileira buscando a inserção do seu nome no Lê Centre Internacional D’Art Contemporain de Paris, em reconhecimento às condecorações, diplomas, troféus, medalhas e outras distinções recebidas em sua carreira.
Seu jeito de ser – detalhista, elegante, vaidoso, combinava praticamente com o lugar onde morava, a Rua Voluntários da Pátria em meio aos oitis e o cenário permanente do centro antigo que mergulhava para fazer surgir os arranha-céus que quebrariam o encanto das novas gerações, das modinhas e dos seresteiros, das moças nas janelas a espera da sua canção preferida vinda da voz rouca dos poetas madrugadores.
Simultaneamente, Luiz Vieira, um dos mais brilhantes compositores brasileiros e também cantor de diferentes gêneros acontecia em nossa cidade para um show; a sociedade local queria ver e ouvir Luiz Vieira com “você é isso uma beleza imensa, toda recompensa de um amor sem fim, você é isso uma nuvem calma, no céu de minh’alma, é ternura em mim”. Do outro lado o compositor queria se sentir em casa, o interior de Pernambuco, esquecer a fama e descobrir a paz numa cidade que margeava seus 90 mil habitantes.
Numa espécie de combinação de anseios estou eu, numa sexta-feira, dez e meia da manhã, preparando o Diário da Araraquarense do domingo quando o Roberto Barbieri, dono do jornal, aparece na minha sala naquele corredor afunilado da Duque de Caxias: “Ivan, veja quem está aqui!”. Era ele, o próprio Luiz Vieira, não mais que 1,70m, já se acomodando em uma dessas cadeiras de courvin, que era o que mais existia na época.
Conversa vai, conversa vem, a Neusinha Martins do PABX da recepção diz: “O Ernesto Lia quer falar contigo”. E ao falar que o Luiz Vieira estava ali sentado, diante de mim, o Ernesto se empolgou: “Ivan traga o Luiz Vieira pra almoçar em casa”.
Quando tocou a “sirene instalada nos altos da fábrica da Lupo” ao meio dia lá estávamos na casa do Ernesto para um almoço com mais de 15 pessoas. Luiz Vieira se divertiu com tudo aquilo pois o quintal da casa do Ernesto se assemelhava ao que ele vivera na sua infância pelos sertões de Pernambuco, era chão puro, quintal que começava nos pés da escadaria.
Era o encontro de dois artistas, dois gênios; e foi lá que ouvi sem qualquer acompanhamento no final de uma tarde de sexta-feira – “você é isso uma beleza imensa…”
*Ivan Roberto Peroni, jornalista e membro da ABI, Associação Brasileira de Imprensa
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