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Prioridade para a vacinação

Por Marcel Solimeo

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No momento em que, ao que se espera, vamos dispor de um número bastante apreciável de vacinas das várias origens, talvez fosse importante discutir quais deveriam ser os grupos prioritários, na medida em que os agentes de saúde e as faixas mais idosas da população sejam atendidos.

Confesso que não entendo a posição daqueles que se opõem a que as empresas possam adquirir vacinas, desde que não concorram com as aquisições por parte do governo, destinadas ao SUS. Mesmo que metade do importado seja destinada ao SUS, aumentando a disponibilidade para a vacinação dos grupos mais vulneráveis. Qualquer grupo adicional que seja vacinado, sejam trabalhadores das empresas, ou os próprios empresários, contribuirá para que se possa atingir a quantidade necessária para reduzir a transmissibilidade do vírus.

Se a preocupação é evitar privilégios, mesmo que em prejuízo do todo, deveriam agora se preocupar com os mais vulneráveis à contaminação e às mortes pela covid-19, que não têm recebido a atenção nem das autoridades, nem da sociedade.

Segundo estudo da pesquisadora Ana Freitas Ribeiro, infectologista do Hospital Emílio Ribas que, com uma equipe, analisou 19.500 certidões de óbitos pelo vírus na cidade de São Paulo, nas áreas habitacionais mais precárias, onde as populações vivem amontoadas, sem poder cumprir o isolamento, com condições sanitárias precárias, e necessitando se arriscar em busca da alimentação, não apenas o número de contaminados cresce mais fortemente que em outras áreas, como a letalidade é muito maior.

Naquelas regiões periféricas, onde mais de 10% dos habitantes têm renda inferior a um quarto do salário mínimo, a letalidade (número de mortes por infectados) é mais de 70% maior do que em áreas de melhores condições de renda. Onde predominam habitações com mais de 3 pessoas por cômodo, a letalidade é mais do que o dobro (110%) do que em áreas mais ricas.

São Paulo possui percentagem bastante elevada de sua população vivendo em habitações precárias, favelas, cortiços, pensões, habitações coletivas. Será que isso explica por que, segundo o SEADE, a taxa de letalidade da Capital (3,8%) é bem superior à média do Estado (3,3%), que, por sua vez, supera a do país (2,8%) e a do mundo (2,1%). Com 19,9% do total de infectados do país, o estado de São Paulo responde por 23,9% das mortes. Existem áreas no estado onde a taxa de letalidade é ainda mais elevada do que a média estadual e atinge até três vezes a média nacional.

Não parece ter tido qualquer repercussão, nas autoridades ou na mídia, o diretor da OMS ter advertido, em abril, que o isolamento era apenas uma das alternativas, e que em regiões muitos pobres ele poderia ser impraticável, pois as pessoas precisam trabalhar para poder comer. Em suas palavras “Isso [isolamento] pode nos dar tempo. Mas cada país é diferente, alguns têm um sistema de auxílio social forte e outros, não. Se fecharmos ou restringirmos os deslocamentos, o que acontecerá com essas pessoas que têm que trabalhar todos os dias?”, questionou o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus. “Eu venho de uma família pobre e sei o que significa ter que se preocupar com o pão diário,” concluiu.

A política generalizada de estados e municípios continuou a se basear no isolamento, no geral, sem qualquer outra medida adicional, (testagem, monitoramento ou análise dos focos mais expressivos de contaminação).

O estudo citado sobre a relação entre mortalidade e letalidade e as condições habitacionais e sociais, bem como vários outros, comprovam que as populações mais pobres são as principais vítimas da pandemia, e que o isolamento não funciona nas áreas mais precárias. Quando muito, é observado apenas nas regiões mais privilegiadas.

Segundo o diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP, o médico sanitarista Oswaldo Yoshimi Tanaka, as condições habitacionais e o longo deslocamento que a população mais pobre precisa fazer para garantir a renda favorecem a propagação do vírus em maior proporção na região.

“Além de estar em condições habitacionais desfavoráveis, não tem recursos outros para poder sobreviver e aí tem que sair para trabalhar mesmo”, diz o médico.

“Infelizmente, continuam sendo os mais penalizados e o grande problema que a pandemia trouxe é que ela não afeta todo mundo igual, ela afeta todo mundo de uma forma diferente, e quanto teoricamente menos proteção social tiver, mais vulnerável fica”, afirma Tanaka.

Assim, tanto do ponto de vista sanitário como, e principalmente, humanitário, parece claro que seria necessário que, ao menos, uma parcela das vacinas que estão chegando, seja aplicada nas regiões onde ocorrem mais contaminações e, sobretudo, a maior letalidade.

Essa política, acompanhada de testagem e segregação quando necessária, além de diminuir o número total de contaminados e de mortes, seria um ato de justiça para com a população mais pobre, esquecida pelas autoridades desde o início da pandemia.

Se não houver foco nas decisões sobre aplicação das vacinas, atendidas as faixas etárias mais vulneráveis, os grupos de pressão de segmentos organizados disputarão as prioridades, e a população mais carente continuará sendo ignorada.

*Marcel Solimeo, é economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo

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