Assim o dramaturgo araraquarense José Celso Martinez Corrêa resume a peça ‘Roda Viva’, de Chico Buarque que, há 50 anos, sofreu duras punições por parte da ditadura militar; leia depoimentos do diretor sobre a produção.
Orgiástico, polêmico e um dos maiores gênios do teatro contemporâneo. Este é José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, 80 anos, filho de Araraquara, irmão de Luiz Antônio, outro grande dramaturgo, assassinado no Rio de Janeiro e que dá nome ao tradicional festival do gênero na cidade.
Ao longo de uma carreira de mais de 60 anos, Zé consolidou-se como uma das figuras mais importantes do teatro brasileiro. Pudera. A bordo do Teatro Oficina – grupo amador que criou na década de 1960 e com o qual segue chocando até hoje -, ele foi responsável por montagens provocativas e críticas.
Todas elas estavam sempre atreladas, de alguma forma, à realidade de cada época. Quer exemplos? O espetáculo-manifesto ‘O Rei da Vela’ (1967) tornou-se emblema do movimento tropicalista; ‘Mistérios Gozosos’ (1994) chocou a comunidade católica com sua caracterização debochada de Jesus; ‘As Bacantes’ (1996) levou a nudez do palco para a plateia, forçada a entrar na orgia dionisíaca, como na Grécia Antiga.
Em 2018, um de seus espetáculos mais famosos (falando em senso comum) comemora 50 anos: o “Roda Viva”, de Chico Buarque, naquele tempo recém chegado à maioridade. Marco da contratura e revolucionária para a época, a peça foi alvo de censura pelo governo militar comandado pelo presidente Costa e Silva.
“Assim como minha geração, em 1967 brotou, em plena Ditadura Militar de Castelo Branco, imergindo na tropicália antropófoga, Chico Buarque deu continuidade à descolonização do teatro musical. Tivemos uma sorte imensa! Íamos ter um coro com 4 pessoas mas, no dia do teste, uma multidão ocupou o Teatro Princesa Isabel, na qual os funcionários, todos negros, vestiam uniformes inspirados na pintura dos escravos de Debret. Formamos um time”, lembra Zé Celso.
A mais famosa punição à ‘Roda Viva’ está datada em 18 de julho 1966, durante a temporada paulistana. Cerca de 20 integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar ligado ao governo, invadiram o Teatro Galpão destruindo cenários e espancando os atores, entre eles Marília Pêra, que havia substituído Marieta Severo, esposa de Chico naquela época.
Em Porto Alegre, a situação foi ainda mais violenta, em 3 de outubro, com quebra-quebra geral, violência e muitas prisões. Assim que acabou a sessão no Teatro Leopoldina, cujas três noites previstas estavam com ingressos esgotados. “O Zuenir Ventura escreveu que o AI 5 inspirou-se no sucesso insurrecional desta peça. Há, realmente, em um texto deles, uma citação à proibição de frequentar certos lugares culturais”, completa.
IMPACTOS
O primeiro texto teatral de Chico Buarque é baseado na música do mesmo nome, “Roda Viva” e fala de um cantor que muda de nome para tentar agradar ao público. Assim, Benedito Silva transforma-se em Ben Silvere, uma crítica à indústria cultural e ao controle criativo que o músico e compositor sentia junto às gravadoras em que trabalhou.
No palco, a performance combinava imagens sacras e cenas de sexo. A interação do elenco com o público provocava momentos de tensão, como na cena em que um fígado cru dilacerado no palco fazia respingar sangue na plateia, e a simulação de uma repressão a estudantes pela polícia embaralhava atores e espectadores.
“Os atores faziam do palco plateia, da plateia palco. Tocavam nas pessoas como no Carnaval, no Candomblé, na Umbanda, enfim, traziam de volta, depois de milênios, o coro da tragédia grega. Este milagre aconteceu na passagem de 1967 para 1968, com o levante telúrico do ‘Roda Viva”’, lembra o dramaturgo.
Foi nessa época, inclusive, que Zé Celso passou a ter seus primeiros contatos com drogas, muito influenciado pelo clima e elenco da montagem. “Entreguei-me. Eles me fizeram fumar maconha, que fumo há 50 anos, primeiro sentindo sua qualidade na nossa percepção, na diversão, hoje, com 80 anos, como medicina para dores. Também me apresentaram alucinógenos maravilhosos: ayuasca, peyote, don pedrito. Hoje, não posso mais tomar porque tive infarto em 1984. Só posso vinho e maconha”, finaliza.
Chico Buarque autorizou o Teatro Oficina a fazer nova montagem de’ Roda Viva’. Zé Celso começou a ensaiar a peça no ano passado com parte do elenco do Oficina, na esteira do retorno de ‘O Rei da Vela’, espetáculo encenado pelo grupo em 1967 e agora de volta aos palcos da companhia. “O momento histórico de hoje clama pela peça mais machucada e, ao mesmo tempo, vitoriosa do teatro” brasileiro: ‘Roda Viva”, finaliza.