A nova medida adotada pela Prefeitura de Araraquara para o controle da Covid-19 no município, recolhendo amostras de 50 pontos da rede de esgoto que atende a cidade, está baseada num trabalho de pesquisadores de pelo menos quatro países, incluindo o Brasil. Numa destas publicações, a pesquisa chega a apontar a presença do novo coronavírus em amostras de esgoto coletadas meses antes do primeiro caso registrado oficialmente na cidade chinesa de Wuhan, epicentro da pandemia de covid-19.
Nesta segunda-feira em Araraquara, a Prefeitura e o Daae (Departamento Autônomo de Água e Esgotos), em parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp Araraquara, implantaram o método que irá analisar, semanalmente, a presença do coronavírus na rede de esgoto de Araraquara espalhada por todas as regiões da cidade. O objetivo é verificar quais locais estão com maior carga viral, facilitando as ações de enfrentamento da pandemia por parte da Vigilância Epidemiológica.
O projeto se restringe ao monitoramento da rede, mas as detecções no esgoto podem servir ainda como ferramenta ampla e barata de vigilância do avanço da covid-19; há ao menos 15 países estudando ou adotando essa estratégia. Num segundo momento de análise observa-se o possível risco à saúde, com a presença do material genético do vírus nas fezes indicando que o esgoto pode ser uma via de contágio.
CORONAVÍRUS NO ESGOTO
Por outro lado, uma equipe liderada por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou seis amostras de 200 ml de esgoto bruto congelado, coletadas em Florianópolis de 30 de outubro de 2019 a 4 de março de 2020.
No artigo, que ainda não foi analisado por revisores acadêmicos, os pesquisadores afirmam que a presença do vírus foi detectada a partir de 27 de novembro. Naquela amostra havia, segundo eles, 100 mil cópias de genoma do vírus por litro de esgoto, um décimo da identificada na amostra de 4 de março. Santa Catarina registraria oficialmente os dois primeiros casos em 12 de março, em Florianópolis.
Segundo os pesquisadores, o vírus foi identificado nas amostras de esgoto por meio do teste RT-PCR, capaz de detectar a presença do Sars-CoV-2 a partir de 24 horas após a contaminação do paciente. Esse teste, cuja sigla significa transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase, basicamente transforma o RNA (material genético) do vírus em DNA para identificar sua presença ou não na amostra examinada.
A bióloga Gislaine Fongaro, líder da pesquisa e professora do departamento de microbiologia, imunologia e parasitologia da UFSC, afirmou que os primeiros resultados despertaram ceticismo na equipe. Por isso, acionaram outros departamentos da universidade a fim de rechecarem e repetirem todos os testes com diversos marcadores virais (para evitar que outros vírus parecidos confundissem a detecção, por exemplo).
Segundo ela, a presença do vírus meses antes do registro oficial pode ser explicada, por exemplo, pelo fato de que as pessoas podem ou não ter ficado doentes ou atribuído os sintomas a outras doenças. Mas, de acordo com Fongaro, apenas estudos futuros podem explicar como o vírus foi parar no esgoto de Florianópolis em novembro.
Um sequenciamento genético do vírus encontrado no esgoto poderia, por exemplo, ser comparado ao outros sequenciamentos feitos ao redor do mundo a fim de estimar a data de origem precisa do Sars-CoV-2 encontrado.
ESTUDOS EM ARARAQUARA
Em Araraquara, os estudos sobre essa tese começam com um projeto piloto local por meio da coleta de material num ponto de esgoto no antigo Pronto-Socorro do Melhado (atual unidade de retaguarda) e no Hospital da Solidariedade, o hospital de campanha para casos da Covid-19. Esses foram os primeiros locais com material coletado para análise da Unesp.
“Com esse monitoramento, nós teremos condições de saber quais as regiões de Araraquara que estão com a curva da carga viral alterada. Saberemos como está a doença em cada região de Araraquara e teremos condições de tomar medidas em relação a cada região. Agradeço muito à Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, que tem sido uma grande parceira no enfrentamento da pandemia”, disse o prefeito Edinho durante o trabalho de coleta na segunda-feira.
A coordenadora extraordinária de Ações de Combate à Covid-19, Fabiana Araújo, explica que a nova ação é uma forma de vigilância territorial da presença do coronavírus.
“As pessoas doentes eliminam o vírus na urina e nas fezes. A presença do vírus no esgoto já foi encontrada em outros locais e até usada para alguns estudos e sequenciamento. A gente vai avaliar e ver se será preciso adotar alguma estratégia diferenciada”, afirmou a coordenadora.
Fabiana ressalta que a nova iniciativa não significa que exista transmissão do coronavírus pelo esgoto. “O tratamento de esgoto é suficiente para eliminar o vírus. A gente só quer mapear e somar mais uma informação às que a gente já tem”, concluiu.
LIÇÕES DO SURTO DE CÓLERA EM LONDRES EM 1854
O RCIA teve acesso ao trabalho realizado pelo jornalista Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres em julho do ano passado e segundo ele há quem defenda investigações à moda antiga. “Esses surtos precisam ser investigados adequadamente com as pessoas in loco, um a um. Você precisa fazer o que John Snow fez. Você questiona as pessoas e começa a construir hipóteses que se encaixam nos fatos, e não o contrário”, defendeu o epidemiologista Tom Jefferson, ligado à Universidade de Oxford, em entrevista ao Telegraph.
O médico John Snow (1813-58) é considerado um dos fundadores da epidemiologia moderna ao sair a campo para investigar um surto de cólera em Londres em 1854 — a doença havia matado dezenas de milhares de pessoas na cidade nas duas décadas anteriores.
Ele não aceitava a teoria mais difundida à época, de que o contágio se dava pelo “ar podre e viciado”. Em sua célebre análise de dados, Snow entrevistou moradores, mapeou caso a caso de modo pioneiro e identificou que a causa do surto era na verdade uma fonte pública de água contaminada por dejetos. A descoberta gerou uma revolução nas investigações de espalhamento de doenças.
PONTOS ESTRATÉGICOS
Em Araraquara, o superintendente do Daae, Donizete Simioni, destaca que toda a equipe da autarquia está à disposição da Prefeitura para esse projeto de uma suposta originalidade do vírus. “Nós identificamos 50 pontos estratégicos de coleta de esgoto, regionalizando a cidade. O Daae está oferecendo apoio logístico a toda a equipe de Saúde para que a gente tenha mais essa possibilidade de identificação do vírus. Estamos juntando esforços para vencer a pandemia”, declarou.
As primeiras coletas no Pronto-Socorro do Melhado e no Hospital da Solidariedade também foram acompanhadas pela secretária municipal de Saúde, Eliana Honain; pela gerente de Tratamento de Água e Esgotos do Daae, Renata Lombardi; pelo gerente de Redes do Daae, Antônio de Souza Freitas Junior; além de outros servidores da autarquia.