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Paulinho e Roseli: De moradores de rua a coletores de alma

Uma vida de perdas, desencontros, cadeia e tratamentos que se iniciaram ainda na infância de ambos, sem prevenção, sem rumo, mas sustentado por um amor profundo de quem perdeu o vinculo familiar em nome do vício. Um eterno agradecimento a São Pio

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Mesmo diante das adversidades da vida, o casal permanece junto, tentando salvar almas que se perderam no vício. Fotos: RCIA

Quem vê hoje o casal Paulo Roberto da Silva (Paulinho) de 47 anos e Roseli Cristina Almeida da Silva (Magrela) de 46, casados há 11 anos, não faz a mínima ideia do que já passaram para sobreviver. Sorridentes e felizes com a nova vida que conquistaram depois de muito sofrimento, hoje acolhem, aconselham, tentam de todas as formas levar para tratamento os viciados que estão em situação de rua. Mas não foi sempre assim, como diz Paulinho, “tive que emergir do fundo da fossa”.

Além da reciclagem, no quintal eles mantém galinhas e pintinhos que correm se esconder na jabuticabeira carregada.

Paulo Roberto da Silva de 47 anos, quase nasceu dentro de uma “Baratinha”, carro antigo da Policia Militar. Filho de mãe alcoólatra foi abandonado na Maternidade Gota de Leite quando nasceu. Foi enviado ao Lar Cristo Rei, e adotado por um casal quando tinha um pouco mais de 1 ano, cujo o pai era um Policial Militar.

Paulinho e Magrela se conhecem desde os 12 anos de idade, moradores do São Geraldo, viviam brincando juntos na praça do bairro. Aos 14 anos Paulinho se envolveu com drogas, na década de 80, a droga do momento era maconha, e seu pai como Policial Militar não aceitava esse tipo de coisa. Mas não foi só por isso como ele diz “eu não tinha disciplina, não gostava de estudar era vagabundão, naquela época éramos chamados de maloqueiros, malandros da Praça do São Geraldo, então meu pai me expulsou de casa”, diz ele

“Eu vivi na rua dos 14 aos 17 anos, quando aconteceu minha primeira internação em Araxá/MG, onde fiquei internado por nove meses. Depois de fazer o tratamento tudo certinho, fiquei trabalhando na clínica e depois passei a coordenador da comunidade terapêutica. Depois de um ano trabalhando lá, me enviaram para trabalhar em outra comunidade terapêutica em Votuporanga, onde fiquei por quase um ano”, conta ele.

Depois deste tempo ele diz que deu “fogo no rabo” e voltou para Araxá. Depois de quase 3 anos limpo, teve sua primeira recaída, onde ele afirma que foi sua destruição total. “Nesse momento eu não cheguei ao fundo do poço, e sim no fundo da fossa, daí para frente foram anos em situação de rua e de cadeia. Me casei, tive 2 filhos que não consegui criar e mais 1 fora do casamento”.

Ele diz que droga e rua, só traz três coisas na vida, Cadeia, Caixão ou Cemitério. E foi assim que ele foi preso em Araxá após vitimar um homem que lhe quebrou o maxilar com uma paulada, ele tentou correr, mas foi perseguido e para se defender deu três golpes de faca no sujeito, o levando a óbito. Foi considerado inocente pela justiça após testemunho de pessoas que viram o fato. Quando deixou a cadeia, teve que fugir para Araçatuba, pois familiares da vítima queriam vingança. Deixou para trás os filhos, e até hoje procura por eles. A filha Jhenifer que hoje está com 28 anos e Junior com 27.

“Quando eu fui preso em Araxá, a mãe dos meus filhos também tinha problemas com drogas e alcoolismo e ela abandonou os dois. Uma vez chegou um oficial de justiça no presídio que eu estava e me trouxe um documento para eu assinar, era uma destituição de pátrio poder. Eu não assinei, pois sabia que se assinasse eles iriam para adoção, mas naquela época o juiz poderia assinar, e assim foi feito, levaram meus filhos para adoção. Sempre tento encontrá-los pelas rádios de Minas Gerais, Google Angel, pois queria contar a eles minha versão, não quero que eles pensem que eu os abandonei. Aprontei muito e tive que fugir”.

Em 2000 Paulinho, voltou para Araraquara e 2001 reencontrou Roseli, que o acompanhava pelas ruas, mas não usava drogas nem consumia bebida alcoólica, de acordo com ela, gostava de ficar no meio dos “pingaiadas”. A mãe de Roseli, não acreditando na versão dela, internou-a compulsoriamente para se livrar das más influencias.

Para Paulo, Rose havia sumindo, então arrumou outra companheira e seguiu pelas ruas até 2002 quando foi preso por tráfico de drogas, de acordo com ele, a droga nem era dele, mas cumpriu 7 anos de prisão. “Fiquei preso em Ribeirão Preto, onde passei pela rebelião de 2006, nunca apanhei tanto, vi coisas horríveis, o Choque entrou no presídio para matar e eu só pensava no massacre do Carandiru. Passamos sete dias pelados a pão e água, apanhava todo dia e nem sabia o porquê, gente morrendo do meu lado, mas Deus me manteve vivo, tinha um propósito”, conclui.

Em abril de 2009, após ter cumprido sua pena, voltou para Araraquara onde novamente reencontrou Roseli e foram morar juntos nas ruas, quando então Roseli começou a usar Craque.  Rose tinha uma filha de outro casamento, que foi criada por sua mãe. Em 2010, o casal resolveu morar em Matão, em um prédio abandonado ao lado da Baldam, onde era cheio de ratos, baratas e tinha 110 quartos, mas só o quarto deles é que tinha energia elétrica. “Aquilo era horrível, parecia um filme de terror, era um nojo. Mas permanecemos na cidade até 2013, até eu tomar um litro de álcool com arnica e entrar em coma alcoólico e delírio e vir embora para Araraquara a pé e nem sei como”, conta Paulo.

Já em Matão Rose, não usava mais droga, pois entendia que seu dinheiro não era para sustentar o tráfico, deixou seu vício esporádico sozinha, contando apenas com sua força de vontade.

Sozinha Roseli vendeu tudo que tinha, inclusive o carrinho que trabalhavam com reciclagem e voltou para as ruas em Araraquara. Não sabia o que havia acontecido com o marido e o porquê de ser abandonada, mesmo assim seguiu sua vida.

Paulo conta que após tomar o álcool com arnica, veio para Araraquara, quando deu por si já estava na cidade vestindo apenas uma calça. Ele diz que até hoje não sabe como chegou até aqui. “Fui para a casa da minha mãe que se assustou com minha situação, tomei um banho e fui para a UPA Central com os pés cheios de bolha, me medicaram e eu voltei para a Praça do São Geraldo onde fui dormir. Fui acordado por um amigo que já faleceu, o Waguinho, que me disse você precisa se tratar, tem uma comunidade aqui que se chama Padre Pio, procure por eles”, disse.

Paulo e Roseli já conheciam a São Pio, pois já haviam passado por lá para tomar banho e comer, quando ainda era na Avenida Getulio Vargas, no Quitandinha. Mas o amigo havia lhe dito para procurar a casa na Rua 8. Depois de perambular e perceber que estava a beira do abismo, resolveu ir até a casa São Pio.

Ele conta que chegou ao local, louco, tremendo por falta de droga e fedendo durante a noite e foi recebido por Sr. Hilário, que trabalha na casa até hoje e lhe disse que naquele momento não havia vaga, lhe deu um copo de leite e um lanche e pediu que retornasse no dia seguinte, que ele daria um jeito de acolhe-lo. Pois Paulo chegou à casa pedindo pelo amor de Deus, que precisava de ajuda ou iria morrer.

No dia seguinte, a data era 23 de setembro, dia de São Pio, e Paulo havia dormido no Parque Infantil. Depois de revirar o lixo de uma sorveteria vizinha para comer as casquinhas, seguiu novamente rumo à casa de acolhimento às 4h da manhã e se sentou na Praça do São José para aguardar a casa abrir.

“Quando deu 6h da manhã avistei Seu Hilário chegando, subi devagar devido aos pés machucados e quando ele me viu  disse: pode entrar moço. Pensei comigo, hoje começa minha libertação. Deram-me banho, fizeram minha barba, cortaram meu cabelo, pois eu estava debilitado demais. Fiquei na casa por 3 meses antes de ir para uma comunidade terapêutica em Estrela D’Oeste, onde permaneci por 4 ciclos. A São Pio faz esse trabalho, acolhe o morador de rua, da condições, medicamentos, ajudam de uma forma para que a pessoa possa se reerguer e manda para a clínica se a pessoa quiser, se não aceitar, fica um período e depois vai embora”, afirmou.

Paulo ficou internado de Novembro de 2013 a Março de 2014, quando retornou a chácara da São Pio, onde ainda ficou interno por três meses, trabalhando na cozinha da entidade por mais 3 meses. Sua mãe soube de sua internação através da Casa e informou então Roseli que o filho estava na Chácara, onde ela foi até o local para pedir o divórcio, pois os dois haviam se casado em um casamento comunitário que houve no Gigantão em 2009. “Mesmo morando nas ruas, nós nos casamos tudo direitinho”, ri o casal.

Nessa época Roseli dormia em um estacionamento próximo a Santa Casa de Araraquara, ou as vezes na casa de um ou de outro conhecido ou parente. Embora tenha procurado a São Pio para se divorciar de Paulo, desistiu da idéia e o coração falou mais alto. Diante de sua situação precária, foi ajudada também por Magda Leite, presidente da entidade, onde conseguiu para ela o Beneficio de Prestação Continuada da Previdência Social para que juntos pudessem recomeçar a vida. Afinal Paulo havia saído do tratamento e não tinha emprego e nem como se sustentar. Ele ainda ficou na casa coordenando trabalhos até setembro de 2014, quando Roseli alugou um cômodo com banheiro na Vila Xavier e foi buscá-lo. Há quatro anos mudaram-se para o Santana onde vivem até o momento.

Hoje Paulinho é coordenador na Casa São Pio, onde leva sua experiência de vida a outros internos através de palestras e trabalhos que faz. Pode ser visto com frequência nas praças conversando e tentando retirar moradores em situação de rua do alcoolismo e drogas, através de tratamento. “Sou contra internação compulsória, ninguém se liberta de nada aprisionado”.

Roseli ajuda o marido na reciclagem, de onde também tiram o sustento da casa

O casal trabalha com reciclagem, aluga aparelhagem de som para bingos, muito católicos Paulo também canta aos domingos na missa da igreja Santo Antônio, que segundo ele, mesmo nas ruas, sua grande paixão sempre foi a música.

“Levo para os internos a leitura dos 12 passos com bíblia, vídeos motivacionais, desafios para que possam acordar e perceber que os únicos caminhos que a droga pode apresentar são cadeia, caixão e cemitério, não passei pelo cemitério, mas cheguei bem perto”

TRATAMENTO

“Estou ha quase 8 anos limpo, se me perguntarem se sinto falta, digo que não. Sinto asco, nojo, fico com raiva de pensar o quanto eu e Roseli perdemos, seja em tempo de vida ou dinheiro”, ressaltou

Ele conta que em Matão tem uma entidade chamada “Movidos pela Divina Misericórdia”, que levava comida para eles no prédio abandonado de segunda, quarta e sexta. Essa comunidade também os levaram para um grupo de oração, onde Paulo acredita que o inimigo tenha se manifestado pela primeira vez.

“Num certo dia fomos para a oração de cura e libertação,  eu surtei e precisou de 10 homens para me segurar, quase derrubei o altar e o sacrário, como se algo tivesse se manifestado em mim. Até hoje o Toninho Melgues que é fundador da comunidade em Matão fala sobre isso, mas foi através dele que eu percebi que precisava mudar de vida”, ressalta.

Ele diz ainda que certo dia foi tomar um banho e teve uma crise de choro, por estar onde estava,  agradeceu a Deus por ter uma casa e poder tomar banho, já passara as vezes até 15 dias fedendo. “Sempre digo, busquem mudança de vida porque Deus da”.

Paulo acredita que é necessário mudanças para o tratamento de viciados, pois muitos fazem um circulo vicioso nas casas de recuperação e não se curam, passam três meses por um lugar, engordam e voltam pra rua. Mais três meses em outro lugar e voltam para as ruas.

“Quando essas pessoas saem do tratamento, eles precisam de ajuda, eu só consegui por mérito da Rose, que tinha um beneficio e me ajudou, eu estava com uma mão na frente e outra atrás, que opção eu tinha se ela não me desse esse suporte, só a rua”.

Para ele a Casa Transitória de Araraquara é um deposito de ser humano. “O prefeito Edinho Silva inseriu um programa chamado “Recomeço”, que da R$ 900 reais por mês, para os meninos fazerem curso no Kaparaó. Eles voltam para dormir na Casa Transitória, eu conheço só três assistidos deste projeto,  que alugaram casa e estão tocando a vida, mesmo fazendo uso de bebida alcoólica, o restante está na zona de conforto, faz curso, come e dorme na casa e usa o dinheiro com drogas e bebidas, to cansado de vê-los jogados pela rua, não tem fiscalização. A intenção do projeto é boa e pode dar suporte, mas sem disciplina e regras, não vai funcionar, eu passei a maior parte da minha vida na rua, eu sei como funciona”.

Paulo é contra dar dinheiro para moradores em situação de rua, pois entende que isso só alimenta o vício. “Porque vão deixar as ruas, se recebem marmitas de entidades que distribuem pelas praças, dinheiro fácil nos semáforos, têm alguns deles que chegam a tirar R$ 500 reais em um dia de mendicância, e tudo isso é revertido em drogas e bebidas. Viver nas ruas se tornou sinônimo de facilidades. Não se nega comida e água a ninguém, mas encaminha para os centros de assistência social da prefeitura e não de dinheiro, existem pontos na cidade que sai até briga para se manter lá pedindo dinheiro”, ressalta

Ele acredita que tem que dar condições para o tratamento, após isso, colocá-los em uma casa com um coordenador, onde o assistido tem que contribuir através do seu trabalho (custear alimentação, aluguel e demais despesas), quando a pessoa estiver bem fisicamente, espiritualmente, mentalmente e capacitado para seguir sua vida sozinho, aí sim deixa o local dando assim espaço para outro. “A prefeitura tem tanto espaço abandonado que poderia implantar um local assim, mas deixam lá, para que usuários de drogas se apossem deles”, diz ele.

“Eu passo pela Praça do Carmo, Santa Cruz,  Santo Antonio, todos que estão lá já passaram pela São Pio  com raras exceções e voltaram para as ruas, por falta de suporte ou força de vontade e desejo de mudança. Não culpo o trabalho feito, muitas vezes a culpa é do adicto. Só deu certo comigo depois de muito sofrer. Foram anos de cadeia, que para mim foi um aprendizado, quando sai pela última vez, me ajoelhei no pátio e prometi a Deus que nunca mais colocaria meus pés em uma penitenciária”.

“O morador de rua perde o vinculo familiar, se não houver uma capacitação, disciplina e regras após sua recuperação não adiantou nada. Aqui em casa um policia o outro, criamos nossa disciplina, porque a palavra “Só por hoje” tem muito valor. Eu sei que se eu sair e consumir alguma substância eu vou fumar tudo que tem dentro da minha casa, que conquistamos com muito trabalho e sofrimento”. As pessoas precisam entender que o Crack só precisa de um trago, depois disso acabou, é só ladeira abaixo. Eu só consegui me libertar porque foi um despertar espiritual muito forte, senão, já estava morto. Eu me livrei da morte por várias vezes, não tem como não valorizar minha recuperação, as drogas e as ruas não me trouxeram nada de bom”.

Para ele o que falta é prevenção e a cidade não tem projetos, “é necessário e urgente um projeto nas escolas com as crianças sobre drogas, desde pequenas. Pois quando chegarem à adolescência já terão o entendimento claro de todo mal que a droga pode causar na vida das pessoas. Vamos deixar claro que bater ou espancar usuários não adianta, se coro desse resultado eu e Rose seriamos santos, prevenção e acolhimento sempre será o melhor remédio. Hoje já perdoei meu pai por ter me colocado na rua aos 14 anos, mas ainda fica um resquício de mágoa, tadinho ele já está velhinho e sei que eles tentaram me dar boa educação”.

E depois de tanto lutar, contra os vícios e a rua Paulo diz que ainda tem sonhos e um deles é ficar velhinho ao lado de Rose cuidando de uma comunidade terapêutica e acolhendo mais e mais irmãos de rua.”Quero dar destinação correta a eles e mostrar que todos temos uma nova oportunidade na vida, alguns já não tem mais forças e são esses que temos que pegar no colo e levantar, porque o principal culpado de tudo que acontece em nossas vidas somos nós mesmos”, finalizou Paulinho.

Nina a guardiã, pretende deixar quem bebe ou usa drogas, bem longe de sua casa

Um fato pitoresco na casa de Paulinho e Rose é que adotaram uma cadelinha chamada Nina. Muito simpática e amorosa Nina não suporta usuários de drogas ou bêbados que passam pela calçada, late desesperadamente. “Minha casa virou a sucursal da São Pio, e muitos irmãos de rua vêem aqui pedir ajuda quando caem e a Nina fica louca da vida. Quando passam pela calçada ela avança, penso que ela quer afastar o inimigo” ri ele, da cachorra que já entendeu que os vícios devem ficar do portão pra fora.

Texto e fotos : Suze Timpani