
O químico Hernane Barud, da Universidade de Araraquara (Uniara), espera inaugurar em julho, em Santa Bárbara d’Oeste, interior paulista, a segunda unidade de produção de membranas de celulose bacteriana na HB Biotech, da qual é sócio. Resultado de investimentos próximos a R$ 1 milhão do grupo Amas Investimentos, que se integrou à empresa no ano passado, a nova fábrica deverá ampliar a produção mensal para 7 mil mantas de 50 centímetros (cm) por 30 cm.
Flexíveis, biocompatíveis e com grande resistência mecânica, as membranas são produzidas por meio de fermentação controlada de linhagens selecionadas de bactérias Komagataeibacter raethicus (ver infográfico mais abaixo). Elas funcionam como suporte para a regeneração da pele e como barreira à infecção bacteriana. Por essa razão, facilitam a cicatrização de ferimentos, queimaduras e feridas crônicas, substituindo similares feitos com compostos derivados de petróleo. Completada a cicatrização, elas se soltam sozinhas, como as crostas escuras que se formam naturalmente sobre os ferimentos. Servem também para filtrar líquidos e como espessante de alimentos ou de cosméticos, como os condicionadores de cabelo, entre outras aplicações.
“Vamos produzir tanto membranas para uso médico quanto insumos, na forma de gel e microfibras, a serem utilizados como espessantes, para empresas do setor de cosméticos e alimentos”, diz Barud. “É um mercado crescente.” De acordo com a consultoria norte-americana Business Research Insights, esse tipo de material representou um mercado global de US$ 480 milhões em 2024, com um crescimento estimado em 18% ao ano de 2025 a 2033.
Barud fez o mestrado e o doutorado sobre membranas bacterianas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e foi sócio da Nexfill, fabricante desse tipo de material até 2017, quando fechou. Em seguida, ajudou a criar a HB Biotech, atualmente instalada na incubadora municipal de Araraquara, interior paulista.
Com apoio da FAPESP e colaboração com universidades paulistas, a HB investiga as possibilidades de incorporar fármacos à membrana produzida a partir da bactéria Gluconacetobacter xylinum. Uma das possibilidades é o reforço com o antibiótico rifampicina para tratamento de infecções de pele, como relatado em um artigo de abril de 2024 na revista Cellulose. Outra é o acréscimo de alginato de cálcio, em busca de um tratamento mais rápido contra queimaduras, como descrito na edição de julho de 2024 da Acta Cirúrgica Brasileira.
Pesquisas em universidades têm ajudado a desenvolver essa área no Brasil. Em um dos prédios da Estação Experimental de Cana-de-açúcar da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), campus de Carpina, a 45 quilômetros da capital, funciona o laboratório de produção de uma empresa de origem acadêmica, a Polisa Biopolímeros, criada em 2015. Feita a partir da bactéria G. hansenii, a membrana que sai dali, quando pronta, apresenta-se como filme, com uma espessura variando de 0,01 mm a 0,03 mm, porosidade de 85% e alta capacidade de absorção e retenção de água (190%), como detalhado em março na revista científica Carbohydrate Polymer Technologies and Applications.

“Já podemos vender, mas estamos adequando o processo para uma produção em maior escala”, conta a farmacêutica Girliane Regina da Silva. Em 2022, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) concedeu à empresa o registro de dois usos da membrana, para tratamento de unhas extraídas, favorecendo o crescimento de uma nova, e para lesões externas do aparelho urinário, ambos na classe I, que abarca produtos médicos que absorvem os líquidos liberados por lesões superficiais e podem ser usados por alguns dias.
A Polisa exemplifica a trajetória de muitas startups nascidas em universidades. A produção acadêmica tem sido intensa. Desde 1998, quando o engenheiro de produção Francisco Dutra, da UFRPE, encontrou a bactéria G. hansenii em tanques de fermentação de cana-de-açúcar e descobriu que ela poderia produzir membranas de celulose, foram publicadas dezenas de artigos em revistas científicas nacionais e internacionais, indicando a capacidade da membrana de favorecer a cicatrização de feridas e de artérias em ratos, coelhos, cães e porcos. Em seres humanos, serviu para fechar perfurações do tímpano e ajudar na recuperação de feridas, incluindo as de pessoas com diabetes, de difícil tratamento.
A maior dificuldade da empresa é ampliar a escala de produção. “Para crescer, precisamos de investimentos, que não temos”, conta o cirurgião José Lamartine de Andrade Aguiar, 80 anos, professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e um dos sete sócios da empresa. Até agora, segundo ele, as conversas com possíveis investidores não deram certo. A empresa se mantém essencialmente com recursos de projetos de pesquisa de agências estaduais ou federais, além de desembolsos dos próprios sócios, todos com outras atividades.
A membrana – um polímero, formado essencialmente por moléculas de glicose – tem uma história longa. Em 1886, quando estudava a fermentação do ácido acético, o principal componente do vinagre, pela bactéria G. xylinum, o químico britânico Adrian John Brown (1852-1919) identificou pela primeira vez esse tipo de película gelatinosa, formada por celulose pura, com a mesma estrutura química da celulose sintetizada pelas plantas. Nos anos seguintes, outras bactérias, como Azotobacter, Bacillus, Lactobacillus e Zooglea, revelaram-se capazes de produzir esse material em larga escala.
Meios de cultura ricos em glicose, fósforo, nitrogênio e carbono, como cascas de café, palha de trigo, bagaço de frutas (como os citros, na HB Biotech) e resíduos da produção de cerveja ou queijo e de processamento da cana-de-açúcar (o melaço, como na Polisa) servem como nutrientes para as bactérias. “A bactéria elimina o polímero pelos poros após se alimentar dos açúcares do melaço”, conta a bióloga Layla Mahnke, da Polisa, enquanto mostra os frascos em que as bactérias são cultivadas.
EQUIVALÊNCIA COM MATERIAIS SINTÉTICOS

Tanto as membranas de fabricantes nacionais –incluindo a Bionext, Fibrocel, Innovatecs e Vuelo – quanto as produzidas nos Estados Unidos, Canadá, Suécia, Reino Unido, Alemanha, França e Japão propiciaram uma cicatrização de ferimentos e queimaduras mais rápida e com custo menor que a maioria dos equivalentes sintéticos, de acordo com um artigo de pesquisadores do Laboratório Químico-farmacêutico da Aeronáutica e da Polisa, publicado em fevereiro de 2024 na Research, Society and Development. Enfrentam, porém, a concorrência de membranas aditivadas com goma xantana, etanol e ácido acético, ou feitas com alguns produtos sintéticos, como poliuretano e rayon.
Em outra pesquisa, um grupo da Unesp, campus de Botucatu, verificou que uma membrana produzida pela bactéria Acetobacter xylinum na Innovatecs, de São Carlos, interior paulista, estimula a produção de interleucina 10 (IL-10), uma proteína com ação anti-inflamatória. Os resultados foram detalhados em um artigo publicado em fevereiro de 2022 na revista Materials Letters.
Embora se trate de um material promissor, ainda há questões não resolvidas. Pesquisadores da Universidade Itmo (antes chamada de Universidade de São Petersburgo de Tecnologia da Informação, Mecânica e Ótica), na Rússia, alertam, porém, para a necessidade de mais estudos sobre a biocompatibilidade a longo prazo e eventuais reações indesejadas do organismo, além de protocolos padronizados para os testes de eficácia das membranas de celulose bacteriana, como argumentado em um artigo a ser publicado em junho na Carbohydrate Polymer.
“Uma das grandes dificuldades é a ampliação da escala de produção, por se tratar de um processo fermentativo”, observa o químico Guillermo Castro, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que participa de pesquisas com a HB Biotech. Com sua equipe, ele procura novas espécies de bactérias capazes de produzir membranas celulósicas e investiga as possibilidades de incorporação de fármacos antitumorais ao material. “Para evitar a concorrência com grandes empresas, deveríamos buscar aplicações específicas, como o uso de membrana para tratar queimaduras ou do gel para alguns tipos de câncer cerebral”, ele sugere. (Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP)