Time amador da Ferroviária em 1958
TEXTO: RAFAEL ZOCCO
12 de abril de 1950. O povo não precisa estar feliz para ter o futebol. Só de possuir a Ferroviária, da nossa Morada do Sol, já bastava. Só de empunhar o manto e colocá-lo no peito é um entusiasmo para o mais fiel torcedor grená, cor vinda das engrenagens dos vagões por onde a locomotiva passa.
O legado deixado por Antônio Tavares Pereira Lima para Araraquara não tem valor e nem nível que qualquer divisão possa afrontá-la. Seremos sempre o guia para conduzi-la aonde for, nunca deixando de ser o carvão da sua caldeira e fazendo com que os vagões não se descarrilhem.
Hoje, o torcedor que vislumbra com a bandeira pelas ruas pode se sentir invejado daqueles que nem davam bola ao clube que ostentou por muitas décadas a cidade, com partidas brilhantes, desfile de jogadores de seleção brasileira e podendo ver a atmosfera que um estádio de futebol consegue produzir de forma descomunal.
Muitos jovens intrépidos fizeram parte desta Academia do Interior. Quer prova disso? Em publicação do jornalista Gonçalves Filho ao jornal “O Imparcial” no dia 08/03/1951, ficou decidido por anuncio feito na residência do presidente Pereira Lima que o time disputaria o seu primeiro campeonato amador daquele ano, organizado pela LAF (Liga Araraquarense de Futebol), para escolher os futuros atletas para o futebol profissional. Podemos assim concluir que o quadro amador foi instituído antes do profissional.
A primeira vez em que o time grená entrou em campo foi no dia 08/04/1951, fazendo a preliminar do jogo Paulista FC x Monte Azul. Na estreia, a Ferroviária perdeu para o Paulista pelo placar de 3 a 1. O gol marcado pela o que seria chamada de Ferrinha foi de Monte II. A equipe foi a campo com Zé Carlos; Binho e Fincati (Bijou); Gastão (Tamoio), Barquete e Miguel; Abacaxí, Ministro, Caxambú, Rim e Monte II.
Isso não só mostra que o futebol amador é importante para ter a base de uma grande equipe. De lá é que saem os futuros profissionais. Isso acontecia em décadas passada. O futebol de base era o futebol amador. Muitos torcedores questionam a forma como isso foi parar. Praticamente, não existe mais o amadorismo como era antes, do promissor jogador sair do chapadão até ir rumo a uma Ferroviária, por exemplo. Os que percorreram este caminho têm muita sorte e competência para seguir a vida dentro e fora do campo. O dinheiro não falava alto naquela época, mas precisava dele para se sustentar.
Mauro Solssia, atleta da Ferroviária nos tempos do futebol amador
A passagem de Mauro Solssia foi rápida pelo time amador da Ferroviária. Não que ele não quisesse continuar jogando. Muito pelo contrário. Se fosse aos moldes que vemos hoje, com certeza seria diferente para ele e outros milhares de jogadores de futebol.
“Na época, eu já comecei a trabalhar na área de seguro com outra pessoa. No futebol não se pagava, principalmente o que se paga o hoje. Precisava me sustentar. Então, no fim de 1976, com 22 anos, decidi pendurar as chuteiras”, destacou o agora proprietário de uma corretora de seguros na cidade.
Mesmo encerrando a carreira precocemente, o preparador físico da época do time principal, Bebeto de Freitas, elogiou bastante o ex-zagueiro para o novo treinador, muito conhecido pelos brasileiros da época.
“Quando o Vail Mota saiu e o Aymoré Moreira entrou no comando da Ferroviária, o Bebeto, que gostava do meu estilo de jogo, falava pra eu voltar e pediu para eu treinar no time principal. Fiquei por quinze dias e posso dizer que, durante este tempo, o Aymoré foi o melhor treinador com quem eu já trabalhei. A visão dele pelo futebol era muito diferenciada. Mesmo assim, não deu para seguir no futebol por causa do trabalho e dos estudos”.
Pelo time amador da Ferroviária, Solssia conquistou os títulos de 1973 e 1975. O ex-jogador fala sobre o tempo em que o futebol amador tinha um grande prestígio na cidade. “Por ser Ferroviária, os outros times da cidade sempre entravam com uma vontade a mais. O pessoal não gostava do nosso time até por ter uma equipe profissional. De rivalidade mesmo posso considerar contra o Benfica, já que era do Carmo e a ADA era de lá também”.
Clotildes com o filho Buíra
Outro aventureiro da bola que participou dos títulos da locomotiva no amador foi Marcos Brandão da Silva, o popular Buira. Nas ruas e nos campos batidos, começou a ter os primeiros contatos com o futebol. Certo dia, jogando no campo do ACCO, Paschoal Gonçalves da Rocha observou o menino franzino e despertou o interesse em levá-lo para a Ferrinha.
“Ele me levou para o dentão da Ferroviária e de lá eu não sai mais. Em 1970, em uma partida de aspirantes em Ribeirão Preto, o Vail Mota acompanhou o time e me viu jogar. Após a partida, ele conversou comigo e disse que queria eu no time”.
Em 1972, com 16 anos, Buíra estava no time amador da Locomotiva e se juntou a um seleto grupo de jogadores que contribuíram para a história grená. Mas, a carreira do ex-meia-direita durou pouco tempo.
“Depois do título amador, em 1975, eu tinha 19 anos e queriam que eu fosse para o time principal da Ferroviária. Porém, a família pesou na hora da decisão. Era complicado ficar viajando e deixar eles pra trás”.
Buíra recebeu diversos convites de Bazani para voltar ao escrete grená, mas sem sucesso. Com estudos bancados pelo Dr. Crocce na época, o jovem jogador defendeu as cores do Santana. “Ele me ajudou muito e continuei jogando bola por aqui mesmo. Sempre insistiam para eu voltar, mas decidi optar pelos estudos e o trabalho”.
Uma das grandes promessas da cidade era irredutível. Chegou a receber até propostas de Portuguesa e Corinthians, que tinham olheiros no futebol amador da cidade, mas o não estava sempre na ponta da língua. O sucesso de Buira ficou permanecido aqui, como mais um filho de Araraquara.
O GOL DE UM ILUMINADO CHAMADO EUZÉBIO
A década de 50 foi um marco com a criação da Associação Ferroviária de Esportes. Potência e força não faltavam ao time que já buscava o sonhado acesso à divisão especial do Paulistão. Todos sabem que o feito seria conquistado em 1955, após vencer o Botafogo de Ribeirão Preto pelo placar de 6 a 3, na Fonte Luminosa.
Mas foi um marco também para futuro um jogador que ainda dava os seus primeiros passos na cidade. A família Bonifácio veio de Tabatinga e se instalou em uma fazenda próxima ao estádio grená, o que facilitou a vida do então menino Euzébio.
O menino logo se enturmou e fez parte do juvenil do Primavera e Bangu, times que ficavam próximos de sua casa. O time treinava onde está localizado hoje o Ginásio Castelo Branco, o popular Gigantão.
“Havia uma figueira gigantesca perto do campo e fazíamos daquilo o nosso vestiário. Certo dia, um amigo mudou a minha vida. A sua idade no time da Ferroviária tinha estourado e ele me indicou para fazer parte do time infantil”.
E a carreira deslanchou. Em seu primeiro ano, o meia-direita conquistou título pela categoria e não demorou muito para que chamasse a atenção de Picolim.
“Em 1954 eu estava no juvenil. Em 57 eu estava no amador da Ferroviária. O Picolim olhou para mim e jogou a camisa do time, sem número. Aquilo tudo aconteceu de forma muito rápida”.
O iluminado jogador fez parte do time que conquistou o tricampeonato amador (1957-58 e 59), além de fazer parte da seleção amadora da cidade que tinha ninguém menos que Dudu na equipe.
Porém, em 1958, Euzébio ficaria conhecido como o primeiro autor do gol noturno na Fonte Luminosa. Na pré-inauguração dos refletores do estádio no dia 8 de outubro de 1958, contra a Ponte Preta, o camisa 7 entrava para história como o primeiro jogador a marcar o primeiro gol com luzes artificiais no certame grená.
“Uma bola chutada bateu na trave e voltou dentro da pequena área. Sobrou eu e a bola, mas a marcação estava chegando. Acabei indo de carrinho, chegando a trombar com o zagueiro. Todos os jogadores vieram comemorar comigo e eu não estava com o pensamento nos refletores. Depois que a ficha caiu”.
O placar terminou em 3 a 1 para a Locomotiva. Os feitos de Euzébio não pararam por aí. O lugar no time principal da Ferroviária estava garantido. O seu entusiasmo aumentou quando o clube excursionaria pela Europa no início da década de 1960. Quase desacreditado, o jogador recebeu a notícia, vinda de Arnaldo de Araújo Zocco, o Cana, que mudaria a sua vida.
“Eu estava treinando com o time. O “seo” Cana chegou perto do alambrado, me chamou e disse “você vai viajar”. Eu entrei em choque. Não acreditava que tinha ouvido aquilo. Foi uma alegria imensa fazer parte daquele time que excursionou para a Europa”.
Parecia que Euzébio, com o nome do Pantera Negra, teria um futuro brilhante se tornaria um dos grandes atletas que a Academia do Interior teve, mas em 1964 a carreira seria interrompida aos 19 anos.
“Naquele ano eu consegui o meu passe livre junto ao Pereira Lima. Eu comecei a perder espaço no time e queria continuar jogando. Foi quando conheci a minha namorada e nos mudamos para Franca. Fiz Tiro de Guerra lá e joguei também pela Francana. Mas eu nunca deveria ter deixado a Ferroviária. É uma coisa que me arrependo”.
“No meu tempo jogávamos por amor. Quando joguei pelo amador eu ganhava cerca de 200 réis e ajudava em casa”, diz ele ao fechar a sua história em uma brilhante ‘história’ da Ferroviaria que completa neste dia 123 de abril, 68 anos.
Ferroviária em 1973