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Nem parece, mas eram militares, fundadores do Grêmio e craques

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Gremio 19

Gremio 19

Quando aquele escurinho que chamavam de Paulista pegava na bola, para o time adversário era um verdadeiro Deus nos acuda. Os cruzamentos para a área eram tão frequentes que os cabeceadores usavam um “gorro”. Na defesa então ninguém se atrevia a querer passar por Maranhão. O Grêmio por si só era temido. E sua história foi atravessando décadas até chegar ao brilhantismo dos irmãos Longhini, a leveza de Rui Júlio fazendo a bola deslizar no gramado, os gols de Zé Augusto. Tudo aconteceu num tempo de romantismo do futebol amador que ficou na saudade de cada um de nós.

Gremio 111961 – Zé São Carlos, Napeloso, Dicão, Camargo, Degão, Neto, Silveira, Adalberto José Gouveia (na época tenente e presidente); agachados – Galli, Casquinha, Fulgêncio, Canhete e Laerte Rossi, um time de respeito para os padrões dos anos 50 e 60

NOSSO ETERNO GRÊMIO

As histórias que surgem dos times amadores parecem inacabáveis. A cada entrevista marcada, a cada depoimento, a cada expressão, é uma experiência nova e histórias que enchem de orgulho o esporte araraquarense. O jovem de hoje se questiona: por que não presenciei isso? Por que não estive nesta época, com meu pai, com meu avô, aficcionados pelo futebol que vai de lá pra cá dentro das quatro linhas?

“Gremiação”, um dos times que mais deu trabalho nos anos 70, enchendo os Estádios Municipal e Fonte Luminosa, merece da comunidade uma homenagem pelo que simbolizou ao nosso futebol. O Grêmio Desportivo da Polícia Militar tem uma história de conquistas, não apenas no conjunto, mas de vida de seus atletas. O time, composto pelo corpo militar da cidade, dava trabalho aos adversários mais tradicionais da época.

Gremio 12Time 1962 – Cel. Gouveia, Heitor Marques, Braga, Napeloso, Camargo, Natal, Nene, Maurinho, João Luchini, Nelson Orlando e Zito Melhado; agachados:  Zé São Carlos, Casquinha, Dicão,Fulgêncio Moura, Valdimir e Araújo

A determinação, que era um dos grandes pontos fortes da equipe disciplinada, vinha direto do quartel. Os treinamentos pareciam de um time profissional, como aqueles que vemos hoje em dia. Nas vésperas de um jogo realizado num fim de semana, treinamentos eram feitos nas quintas e sextas-feiras no segundo campo localizado ao lado da Fonte com a presença de dois preparadores físicos. O Tenente Edmilson Rodrigues era quem ditava as regras em nome da gestão do Grêmio.

“Os treinos eram duros e árduos. Me recordo do Bazani e de mais um membro da comissão técnica da Ferroviária, acompanhando nossa rotina naquele campo. Isso chamava a atenção deles”, detalha o ex-membro da Polícia Militar, Edmilson.

 Gremio 101953 – Saulo, Juvenal, Maranhão, Rocha, Franco, Maneco, Leite e Sargento. Agachados: Paulista, Negão, Neto, Cássio e Leda, a mais antiga das formações do Grêmio da Polícicia Militar em Araraquara

Fora os jogos na cidade, os soldados visitavam outros campos do interior de São Paulo para disputas com uma equipe local ou de outro quartel amigo. As vitórias vinham de forma tranquila, pela técnica e força que os militares apresentavam.

“Como a sede ficava localizada no Iguatemi, os nossos grandes rivais eram os times de lá. Mas não tinha nada igual quando enfrentávamos o Palmeirinha. Eram jogos em que as arquibancadas do Estádio Municipal ficavam cheias. Lembro até de bandas que entravam e tocavam para incentivar os times. Era uma outra atmosfera”, recorda Edmilson.

Gremio 14Time do Grêmio em 1975: Vanderlei Souto, Sgt. Edmilson, Nene Costa, Eduardo, Nucci, Rui Julio, Henrique, Marcão, Elias, Macarrão, Parelli (treinador) e Rozan; Luzinho Mascitelli, Aristides, Mimi, Nego, Jair, Jorge, Agostinho e Zé Augusto

Hoje, o tempo mostra a história do Grêmio com uma sala forrada de troféus até mesmo em corrida de lambreta com valorosos soldados das diversas unidades como cavalaria, canil, banda, policiamento de rua, administrativo, competindo em nome de uma das polícias mais conceituadas do Estado.

Entre as curiosidades está uma que ocorreu no dia 13 de janeiro de 1963, final da segunda divisão do Campeonato Amador da cidade. A partida entre Grêmio e Gavião Peixoto (4×0 para os militares) foi transmitida pela rádio A Voz Araraquarense, sob o comando de Denisar Alves, fato inédito para a história do futebol amador.

Com boas performances, o Grêmio possuía seus grandes craques. Um deles teve a honra de pisar no quartel e nos gramados: Rui Julio, o “escurinho” dono da bola.

O PRÍNCIPE E O REI DO FUTEBOL

Gremio 131975, estreia de Rui Julio contra o Santos de Pelé; ele foi o autor do único gol da Ferroviária na derrota por 4 a 1

“O cara que nasceu na época errada do futebol”. É o que os seus ex-colegas de campo e de quartel falam hoje em dia. Difícil imaginar o quanto Rui Julio foi querido e respeitado em nossa cidade, de acordo com as histórias contadas.

Rui Julio começou a jogar bola nas peladas do Faveiral; algum tempo depois estava no Estrela onde permaneceu por cinco anos ao lado de grades jogadores. A convite de Vail Mota ingressou na Ferroviária em 1967, com promessa de um futuro brilhante. No dia 3 de março de 1968, no seu primeiro grande desafio, foi enfrentar o Santos de Pelé na Fonte Luminosa lotada pelo Campeonato Paulista. A Ferrinha viria a conquistar o bicampeonato do interior naquele ano e sempre foi uma pedra no sapato da equipe santista. Apesar da locomotiva ser derrotada por 4×1, o nome do jogo foi Rui Julio.

Gremio 20Capitão Rodrigues, por um longo período foi presidente do Grêmio

“Naquele dia (contra o Santos), o Rui jogou o fino da bola. Meu Deus, ele era um jogador espetacular. Tinha a missão de marcar o Pelé, que ainda estava no auge, por isso não deu um pontapé sequer durante toda a partida”, contou Carlos Roberto Marques, o Pezinho, ex-secretário da Associação de Cabos e Soldados de Araraquara, pouco antes de falecer em 2015.

Rui Julio era um jogador versátil difícil de se encontrar na época. Era uma espécie de Paulinho (Tottenham) ou Elias (Corinthians): um jogador que marcava firme seus adversários e essencial na saída de bola, aparecendo como elemento surpresa na área adversária. Hoje, podemos encontrar vários com essas características, mas que não fazem tão bem esta função.

Após quatro anos na Ferroviária (até 70), Rui se transferiu para o América de São José do Rio Preto, segundo time de Pereira Lima, fundador da Ferroviária. Com salários atrasados e desgostoso com o rumo da carreira, acabou desistindo do profissionalismo e ingressando na Polícia Militar, em 1971. Foi aí que o Grêmio entrou em sua vida.

“Além de jogar muita bola, era um cara espetacular, um homem exemplar. Lembro que quando chegava perto de datas festivas, presenteava a todos com alguma lembrança. Como policial, era competente e dava show no trânsito (risos)”, relembra o tenente Edmilson.

Gremio 21Edmilson, fanático pelo Grêmio, faz parte da história

Esteve ao lado de jogadores como Chiquinho, Aristides, Mascitelli, Jorge Longhini, Jairzinho, Mimi, Henrique, Morgado, Nucci, Macarrão, Nego, um time forte, dirigido pelo então tenente Edmilson Rodrigues. Seguiu atuando com categoria, em grande estilo, mostrando um futebol vistoso e técnico e ajudando o time militar nas conquistas. Uma delas, o título de campeão amador da Liga Araraquarense de Futebol em 1975, além de outras glórias.

Rui Julio atuou pelo futebol amador e Grêmio até 1979, sendo grande destaque no Amadorzão da LAF daquele ano, levando o prêmio de melhor volante da competição. Logo depois, passou a atuar no futsal, jogando pelo Os Preocupados e Mauá.

Gremio 16Jogo do Grêmio da Polícia Militar com o Tiro de Guerra. O Tenente Coronel Adalberto José Gouveia entrega medalhas aos vencedores, aparecendo Dudu (ex-Ferroviária e ex-Palmeiras), ainda como Reservista do Exército, em 1954

Seu grande sonho era virar policial rodoviário. Em 18 de agosto de 1989, a vida de Rui Julio foi interrompida aos 41 anos de idade. Voltando de São Paulo com o seu instrutor após uma solenidade de formatura, havia um incêndio na estrada. A fumaça cobriu toda a pista e a viatura acabou colidindo na traseira de um caminhão. Casado com Cassilda Mariana da Silva Julio, Rui deixou três filhos: Rogério, Luciana e Juliana.

CONQUISTA MEMORÁVEL

Pensar que o tempo áureo do futebol da cidade fazia despontar grandes craques; imagine uma equipe sagrando-se campeã de forma invicta, com a melhor defesa e ataque, além de ter o artilheiro do campeonato com 37 gols e o vice com 35. Parece videogame, mas foi o Grêmio da Polícia Militar em 1975.

Antônio Parelli Filho, treinador do Grêmio em 1975, relembra os bons tempos: “Recebi convite do Cel. Gouveia para ser técnico do Grêmio após ser campeão pelo Benfica. Fiquei receoso, pois somente militares jogavam. Para a minha surpresa, fui bem recebido por todos e me senti em casa”.

Gremio 22Uma das maiores alegrias de Parelli: ser técnico e campeão amador pelo Grêmio da Polícia Militar

Além de treinador, Parelli se preocupava com a vida dos atletas. Sempre procurava ser o “pai-psicólogo” com os problemas familiares da equipe e orientava para que o jogador não abandonasse seus objetivos. Eu conseguia manter a equipe com foco nos jogos. Como havia bom convívio com os militares, Gouveia liberou a entrada de civis para fortalecer o time.

Parelli tem algumas lembranças da  época e uma delas, é que “nos intervalos das partidas, dava suco de laranja para os atletas. Fazia uma batida, pois sabia que precisavam de vitamina B12 nos jogos. Era um diferencial e eles gostavam muito (risos)”.

O campeonato em 1975 foi disputado em turno e returno. O Grêmio havia vencido todos os jogos e na final, diante do Palmeiras, o jogo ficou no 0x0, mas não manchou a grande atuação da equipe. Recorda ainda, que “durante o jogo com o Palmeiras, o Cel. Gouveia não estava no estádio, mas sim do lado de fora dando voltas com o carro e ficava perguntando pelo rádio o resultado. No término da partida, nos encontrou no vestiário numa alegria só”.

Um dos destaques daquele time, o meio-campista Aristides, recorda do tempo que jogou no Grêmio. “Defendi o time dois anos antes mesmo de ingressar na polícia. Aquela equipe era excelente, com bons jogadores. A amizade prevalecia dentro e fora do campo. E permanece até hoje nos nossos reencontros em nossa sede”.

Gremio 171963: o Grêmio empata com o Tamoio por 6 x 6, no campo da Usina. O time que jogou: Ceribelli, Rubão, Ditinho, Pita, Martins, Rozan e Braga; agachados: Agostinho, Itamar, Pedro Rizzo, Tenente Wladimir e Laerte Rossi

Outro jogador que participou daquela campanha foi Carlos Antônio Rosa, o Pita. Apesar de estatura baixa (1,66), era zagueiro e possuía grande impulsão. “Eu tinha a facilidade de jogar em qualquer posição na zaga. Fui até lateral esquerdo em algumas partidas”. Além de baixo, Pita tinha um vigor físico invejável. Era difícil passar pelo baixinho. “Quando a bola passava pela nossa zaga, eu ficava na sobra e chegava junto ao atacante adversário”.

UMA MULHER À FRENTE DO GRÊMIO DA POLÍCIA MILITAR

Passados os anos dourados do Grêmio com seu belo futebol e conquistas, chega o momento em que a agremiação toma outro rumo em sua vida.

Gremio 23Sargento Ceres, na Sala de Troféus Rui Julio, sede da ADPM, antigo Grêmio

Com receio de no futuro o clube não ter mais condições de arcar com seus custos, os militares que constituíam seu corpo administrativo decidiram fundar em 06/01/1980, a ADPM (Associação Desportiva da Polícia Militar), liderada pelo agora Cel. Joaquim José Maurino Rodrigues, se livrando dos impostos pagos à Prefeitura Municipal.

Rodrigues, contando com o apoio dos colegas e diretores, fez uma brilhante gestão com duração de seis anos;  depois foi a vez de Edmilson assumir a função, também notável em sua administração Lá ficou por quase 20 anos. Colocada em votação, a diretoria pautou em acabar com o time de futebol amador numa época em que o esporte também entrava em um processo decadente.

Gremio 24Carlos Roberto Marques (Pezinho), quando presidente da Associação de Cabos eSoldados, ao lado do inseparável amigo Pita, um dos craques do Grêmio no passado

Hoje, a Associação é presidida pela Sargento Ceres Franco, que está no poder desde 2006, sempre interessada em conhecer e mostrar a gloriosa trajetória do antigo Grêmio. Em uma sala espaçosa, foi criada a “Sala de Troféus Rui Julio”, em homenagem ao maior atleta que a ADPM já teve.

“A associação escolheu um nome extraordinário para homenagear. Rui Julio sempre será lembrado com carinho pelas conquistas e pela pessoa que foi em Araraquara”, declara Ceres Franco.

Atualmente, a sede conta com ginásio de esportes, dois minicampos, sala de ginástica, sala de jogos, áreas de lazer, piscinas e sauna. “Infelizmente não temos a presença de tantos militares neste nosso espaço. Nos finais de semana, aposentados e várias famílias se reúnem para jogar bola e logo em seguida, um churrasco para se confraternizarem. Há presença de alguns civis que pagam a mensalidade da associação também”, conta Ceres.

Gremio 18Cel. Gouveia, Dr. Lofredo Júnior (Promotor Público), Itamar, Camargo, Lourival, Adauto, Rozan (preparador de goleiros), Beiço e Ceribelli; Nene Pereira, Fulgêncio, Adilson, Nego e Pita

Na verdade, o futebol sempre será reverenciado pelos craques e mitos que fizeram a alegria e a imaginação do araraquarense. Que isso se perpetue e a saudade fique em nós, recordando aquilo que vimos e que o imaginário possa nos arremeter àquele tempo bom, que, infelizmente, não voltará nunca mais.