O Supremo Tribunal Federal decidiu, nos últimos dias, que é constitucional a apreensão de CNH e passaporte de devedores. O julgado ganhou as manchetes dos jornais, causando verdadeiro alvoroço sobre o tema. Mas é preciso explicar a extensão e os efeitos dessa decisão.
É importante esclarecer, primeiro, que para que um devedor chegue a ter o seu passaporte apreendido, é necessário que haja um processo judicial. Isso porque, apenas o juiz pode determinar a apreensão do passaporte ou CNH de um devedor. Logo, as dívidas não ajuizadas, não farão com que o devedor tenha seus documentos apreendido.
Além disso, é importante esclarecer que as medidas de apreensão de documentos são medidas coercitivas, logo, elas não são tomadas logo no início do processo.
Isso porque, vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da menor onerosidade da execução ou, como é conhecido por alguns, o princípio da menor gravosidade ao executado. Esse princípio, que está materializado no Código de Processo Civil, no artigo 805, prevê que “quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”.
Trocando em miúdos, antes de sair apreendendo qualquer documento, o magistrado determinará outras medidas que não sejam coercitivas, como a penhora de dinheiro, por exemplo.
Assim, antes de o credor chegar a pedir a apreensão do passaporte ou CNH do devedor, ele percorrerá todo um caminho durante o processo. Entendemos, desse modo, que as medidas coercitivas, apesar de constitucionais, seguem sendo exceção dentro do processo. Portanto, o credor só conseguirá o deferimento de uma medida coercitiva como a que estamos tratando aqui, se provar que todos os outros meios de satisfazer o seu crédito se esgotaram. E o ônus dessa prova compete ao credor.
Cabe a quem busca receber o crédito, saber o correto caminho a seguir no processo, para que, se frustrada sua execução, possa pleitear medidas de apreensão de documentos. O credor deverá desenhar uma linha do tempo, demonstrando todas as pesquisas feitas e seus resultados, para que o magistrado possa concluir que, de fato, somente restam essas medidas para tentar compelir o devedor a adimplir o crédito.
Somente após exaurir todas as tentativas é que o credor poderá, com base no artigo 139, inciso IV do Código de Processo Civil, requerer medidas coercitivas como as aqui tratadas.
Veja que, segundo o texto da lei, o juiz dirigirá o processo, para “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
Com base nesse artigo, os credores poderão pedir a apreensão dos documentos, pois o texto da lei deixa claro que é possível a concessão de medidas coercitivas, inclusive, nas ações cujo objeto seja o recebimento de valores.
Há que se perguntar, portanto, por qual motivo o assunto chegou a Suprema Corte, se o texto da lei é claro em autorizar esse tipo de medida. Ocorre que, apesar do texto mencionar “medidas coercitivas”, em momento algum, descreve quais medidas seriam essas.
Os devedores defendiam que a apreensão de passaporte ou CNH era uma medida coercitiva inconstitucional, pois ela feria o direito de ir e vir, que é um direito fundamental, que encontra guarida na Constituição Federal, além de ser assegurado pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU.
Assim, com base nesse fundamento, e por se tratar de um direito fundamental previsto na Constituição Federal, a discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal.
Na Suprema Corte, o julgamento foi quase unânime. Com um placar de 10 votos a favor, com apenas um voto contra, o STF entendeu que é plenamente possível a apreensão dos documentos para pressionar o devedor ao pagamento de uma dívida, mas ponderou: cada caso é um caso. Ou seja, há de se analisar as peculiaridades e o perfil de cada devedor, para que então se adote ou não medidas coercitivas como a apreensão de um documento.
Segundo os Ministros, portanto, é necessário avaliar o caso concreto. Entretanto, reforçam que os juízes precisam ter “poderes e criatividade”. Citaram, como exemplo, o caso que ficou conhecido como o “Faraó dos Bitcoins”, que após dar um calote vultuoso, planejava fugir do país. Nesse caso, para os Ministros, a apreensão do passaporte estava absolutamente justificada.
Em contrapartida, se o devedor é um motorista de aplicativo, por exemplo, apreender sua CNH é decretar sua falência, ao passo que, sem ela, o devedor não poderá trabalhar, deixando de ter o mínimo necessário para a sua subsistência e até para ter condições de pagar a sua dívida. Sendo então uma medida ineficaz para ambas as partes (credor e devedor). Nesses casos, ponderam, não seria possível a apreensão do documento para este fim.
Assim, conclui-se que o julgamento foi absolutamente importante para afastar qualquer alegação de inconstitucionalidade da norma, garantindo também segurança jurídica. Entretanto, não significa que serão medidas concedidas sem prévia análise do magistrado ao caso concreto e, sem dúvida, o caminho que a execução já percorreu até ali.
Por Renata Martins Belmonte e Lucas Boarin Pace