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Os tempos românticos da cidade, no Restaurante “Dom Manoel”

Já era madrugada e o pessoal da mesa 04 ainda estava lá. Quase todas as noites era assim: eles se juntavam e ficavam horas e horas, cumprindo um ritual que começou no Bar do Freitas, na Praça Newton Prado, em frente a estação ferroviária em 1948. Dalí a família Freitas se transferiu 20 anos depois, indo para a Estação Rodoviária que acabara de ser inaugurada.

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Manoel de Freitas com os filhos Germano, Maurílio, Moacyr e o neto Maurílio de Freitas Júnior, na inauguração do Dom Manoel em 1968. Ao fundo foto da cidade, então com 60 mil habitantes e a Matriz sem a cúpula

Araraquara no final dos anos 40 não tinha mais que 50 mil habitantes e a cidade também acontecia em frente a estação ferroviária depois da meia noite, com a passagem dos trens da Paulista que vinham de São Paulo ou a saída das composições da EFA que invadiam os sertões da araraquarense. O movimento na Praça Newton Prado se revezava com a ida dos passageiros que seguiam para São Paulo.

Manoel de Freitas, dono do bar, tinha vindo de Motuca para Araraquara em 1939, trazendo a esposa Rosa e os filhos Moacyr, Maurílio, Luiz e Matilde, fixando residência na rua Itália onde o primeiro armazém da família foi instalado, uma espécie de minimercado. Algum tempo depois nasceram mais dois filhos: Manoel e Germano.

Os filhos de Rosa e Manoel de Freitas na sua chegada em Araraquara: Mathilde Rosa Freitas Torres, Luiz Gonzaga de Freitas, Germano de Freitas Neto, Manoel Eurico de Freitas, Moacyr
de Freitas e Maurílio de Freitas (atrás)

O armazém mudou para a avenida São Paulo, entre as ruas Gonçalves Dias e Nove de Julho, e em seguida a família comprou o famoso bar da avenida São Paulo, esquina com a Antônio Prado, onde ficou estabelecida por 20 anos, lembra Moacyr de Freitas, recentemente homenageado merecidamente pela Câmara Municipal com o diploma de “Honra ao Mérito”.

Natural de Motuca, ele nasceu em 1933, estudou na Escola Antônio Joaquim de Carvalho (ANJOCA), fez o científico no IEBA e se formou professor de desenho na Escola de Belas Artes de Araraquara. Trabalhou por 11 anos na White Martins, emprego que deixou para se dedicar ao Bar do Freitas, passando a ajudar o pai Manoel. Foi casado com Maria Helena com quem teve os filhos Moacir, Gustavo e Natalia.

Por 20 anos a família Freitas manteve um bar na rua Antônio Prado esquina da avenida São Paulo, na Praça Newton Prado, em frente a estação ferroviária. Além do mais saboroso Baurú da cidade, o bar oferecia o peixe no papel celofane e com a ida para a estação rodoviária, se transformou no peixe ensopado na cumbuca

O Bar do Freitas a partir de 1950 tornou-se referência para os profissionais que chegavam em nossa cidade, principalmente os médicos que deixavam lá informações sobre suas especialidades e locais de atendimento. “As pessoas desembarcavam na estação e passavam pelo bar buscando as mais diversas orientações”, comenta Moa- cyr. Quando não, os estudantes que se hospedavam nos hotéis das proximidades davam o Bar do Freitas como ponto de referência para entrega de cartas, livros e revistas científicas. Mas era lá também que alguns políticos da cidade e as pessoas se encontravam, apreciando o movimento e discutindo a rotina da cidade, saboreando ainda um Baurú que era especialidade da casa.

A VIDA COMEÇAR MUDAR

Rosa e Manoel comemorando aniversário de casamento

Antes de 1968, era na avenida Portugal pouco acima da rua São Bento que os ônibus da Viação Cometa e Empresa Cruz estacionavam para o embarque e desembarque de passageiros. Também na Praça Nilton Prado paravam as companhias intermunicipais como “Queijinho”, que partia daqui para Guarapiranga e outras pequenas localidades.

Atento ao desconforto dos passageiros e visitantes, o prefeito Rômulo Lupo decidiu construir a partir do seu segundo mandato em 1964, uma estação rodoviária e pediu aos arquitetos Luiz Ernesto do Valle Gadelha e Jonas Faria que elaborassem o projeto, considerado ousado para a época: dois pórticos com  a utilização da técnica de concreto protendido, sustentando uma base que acolhia os usuários do transporte rodoviário.

Moacyr e o pai Manoel escreveram uma das histórias mais belas da culinária araraquarense durante os 30 anos de permanência na estação rodoviária; outros 20 anos foram vivenciados no Bar do Freitas. A casa participou da vida boêmia da cidade no seu importante período de desenvolvimento econômico.

Os ônibus vindos pela avenida 7 de Setembro estacionavam embaixo desta base, fazendo manobras com auxílio de um pequeno balão, porque a Via Expressa ainda não havia chegado até a avenida Portugal. Com a construção da rodoviária, a avenida São Paulo eliminou a ponte sobre o córrego e construiu anexo ao piso superior da estação, um pequeno pontilhão sobre a Expressa que praticamente nascia ali.

Foi neste cenário que a família Freitas embarcou, deixando a Praça Newton Prado para ocupar três boxes da nova estação rodoviária, havendo uma concorrência para bares e restaurantes interessados em explorar aquele prédio público antes mesmo da conclusão da obra. Um dos bares interessados era da dona Tereza, a japonesa do Bar do Mixirica, em frente a Matriz.

Estava criado em 1968 o Bar e Restaurante Dom Manoel levando para o novo espaço, final do mandato de Rômulo Lupo, a experiência adquirida no bar da praça Newton Prado, principalmente do peixe assado no papel celofane. Foi alí que “o peixe da família Freitas” começou a ganhar adéptos como Adhemar de Barros, que veio especialmente de São Paulo para se encontrar com os trabalhadores da EFA, no horto florestal, em um apreciado almoço. Ele saboreou um “dourado” de 25 quilos pescado em Motuca por Orlando Ribaldi, que vendia os peixes para Manoel.

NAS CUMBUCAS DA FEIJOADA SURGIU O PEIXE À MODA DA CASA

O peixe servido no Dom Manoel seguia os padrões de um ensopado inigualável que atraía clientes de vários pontos do Estado. O segredo do tempero é guardado com carinho por Moacyr até hoje.

O sucesso do peixe no celofane fez Moacyr sugerir ao pai o “peixe ensopado na cumbuca” provado e aprovado pelo pessoal da mesa 04 já na Estação Rodoviária. O peixe era pescado sempre um dia antes no Mogi, em sua passagem por Motuca.

“Conversei com o meu pai e fizemos uma experiência. Deu certo e criamos no cardápio o peixe à moda da casa, que ganhou notoriedade”, lembra Moacyr. Mas, até hoje ele tem a receita trancada a sete chaves, dizendo apenas que o segredo está no uso das ervas para o tempero dos peixes normalmente usados como piapara, piracanjuba, dourado, pacú, enviados através da via férrea por um pescador de Motuca (Ribaldi). Eles eram sempre pescados no dia anterior, conta Moacyr.

Famoso e comentado pelos cronistas esportivos de São Paulo que vinham cobrir os jogos da Ferroviária, o o Dom Manoel que começara sua nova vida num espaço com 22 mesas nos boxes 16, 17 e 18, os três primeiros para quem entrasse na rodoviária pela avenida Portugal. No mesmo pavimento havia um local para a Polícia Militar que mantinha plantão dia e noite, varejão, lanchonete do Malarinha, guichês para venda de passagens e sanitários.

Em 1980, o Bar e Restaurante Dom Manoel ficou maior ainda pois com a inauguração da nova rodoviária no final da Via Expressa, Moacyr de Freitas decidiu levar o seu negócio onde estavam os guichês das empresas de ônibus, passando a ter 64 mesas. Embora estivesse em uma Estação Rodoviária, seu ambiente sempre foi tipicamente familiar.

Inauguração do Dom Manoel: José Benedito de Souza (Espingardinha), prefeito Rômulo Lupo, Procópio de Oliveira, Paulo Silva (O Imparcial) e participante não identificado, sentados; Valdomiro Custódio de Lima, Agostinho Toscano, Arnaldo Palamone, Ovidio Delphini, Pérsio de Paula, Celso Almeida Leite, Wennis Dias Macieira, José Ziliolli, Rudney Brunetti, Manoel de Freitas e Geraldo Moreira (O Diário da Araraquarense), em pé

A FAMOSA MESA QUATRO

Desde os tempos do Bar do Freitas, perto da estação ferroviária, alguns clientes fidelizaram o fim de noite. Além de amigos, eles apreciavam uma boa conversa sobre a cidade que aparecia como emergente no interior paulista. O romatismo era pontuado pelos passageiros que desembarcavam ou embarcavam nos trens noturnos da EFA e Paulista e o bar, se transformava num pedaço do céu com a entrada e saída das pessoas.

A imagem de alguns deles ainda é guardada com carinho no velho bar por Moacyr:  Walter Zaniolo, Rubens Arruda, Adayl Torquato (“Três”), Paschoal Meaulo e Itaboray (Receita Federal). No empreendimento da estação rodoviária outros clientes se tornaram assíduos na tradicional mesa 04: Darcy Paschoa- lato, Pedro Fornazari, Everton Aievoli, “Tola Malara”, Hélio La Laina, Cláudio Malkomes e Zachi Stéfano, levados por Walter Zaniolo. Também se juntavam a ele, juízes, promotores e professores que davam aula na Faculdade de Direito do São Bento.

Inauguração do Dom Manoel no Terminal de Passageiras, uma história inesquecível na gastronomia regional

“Na verdade, meu pai não se conformava em ver um cliente jantando sozinho, muitas vezes ia lá puxar assunto e na delas, fazia uma grande amizade e as pessoas passavam a frequentar o local”, conta Oswaldo Romio Zaniolo, filho de Walter.

Num desses dias, diz Zaniolo, estava um senhor sentado com seu filho, e meu pai foi lá. Conversa vai, conversa vem, este senhor lhe comunicou que o seu filho havia passado no exame para a Magistratura e vinha assumir uma das Varas Cíveis desta Comarca. Este homem falou tudo, até o que não devia, como por exemplo: “ Dr. Walter, o meu filho é muito estudioso, teve muita experiência como funcionário do Cartório lá em Ribeirão; vai ser um bom Juiz. Mas ele é um moço ainda, impetuoso como todos os jovens; por favor cuide do meu menino. Foi o bastante. Daquele dia em diante e até o dia em que o menino assumiu uma vaga no Tribunal de Justiça do Estado, meu pai  não o largou, até mesmo quando ele foi preso por ter brigado com um cidadão que jogava lixo na rua. – “Mas, preso?! Por que você não se identificou?” Para não dar “carteirada”, foi a resposta. O Desembargador ainda comenta: Tenho muita saudade do véio, referindo-se a Walter Zaniolo, que se tornou padrinho de casamento de Moacyr e levado para a maçonaria a convite do filho, Osvaldo Zaniolo.

COISAS QUE ACONTECEM

Em outra ocasião, Walter Zaniolo ao chegar no restaurante, viu que uma confusão estava armada. O Germano havia chamado a Polícia porque um jovem, havia jantado e na hora de pagar a conta disse-lhe: “ – Olha, eu saí da penitenciária agora e esqueci a minha carteira e todos os documentos. Por favor espere que eu vou buscá-los. Meu pai vendo aquela confusão foi ter com ele que lhe explicou: Meu nome é Luiz Arnaldo Setti, sou o engenheiro responsável pela Construsam que está construindo a Penitenciária. Saí correndo e esqueci carteira e documentos. Meu pai pagou a conta e nasceu uma boa amizade. O avô dele era um professor e poeta que respondia as cartas do Governador Laudo Natel que ao saber do ocorrido também pediu: Dr. Walter cuida do meu menino.