Eu renuncio!, disse Arnaldo, ao telefone, de sua casa no centro da cidade de Roraima. Roberto, a 4.756 quilômetros de distância, instalado em seu apartamento na cidade de São Paulo, acata a decisão do irmão e se despede.
O que está em questão é a herança deixada pelo pai, falecido há vinte dias, e cujo inventário está prestes a ser aberto. Além de Arnaldo e Roberto, são mais três irmãs que dividirão um patrimônio de cerca de 2,5 milhão.
Arnaldo acaba de renunciar ao seu quinhão por motivos emocionais e práticos: há muito se distanciou geográfica e afetivamente da família, a morte do pai o lembrou disso e causou certo incômodo; com patrimônio próprio bem assegurado, dinheiro não lhe falta; também não quer ter de viajar até São Paulo, perder tempo com tudo isso. E mais: acredita que seus irmãos necessitam mais da herança do que ele.
Porém, ao desligar o telefone, lembrou-se que Angélica, a irmã caçula, recentemente tivera uma doença grave, era viúva, tinha dois filhos e que ele nunca se interessara muito pelos problemas da irmã. Ligou para Roberto e acrescentou: eu renuncio à minha parte da herança, mas quero que Angélica a receba. Novamente Roberto acatou o desejo do irmão sem saber que um equívoco acabara de ser cometido. Avisou o advogado da família acerca da decisão de Arnaldo. O advogado preparou os papéis, enviou ao rapaz em Roraima, ele assinou a renúncia e mandou de volta.
Já com a renúncia assinada e em suas mãos, o advogado avisou a todos que a parte de Arnaldo seria dividida em partes iguais para cada um dos herdeiros. Foi então que Roberto lembrou-se do pedido de Arnaldo, e disse: “nosso irmão quer que a parte dele seja destinada à Angélica”! Tarde demais. Estava feito o imbróglio. A falta de comunicação ou pressa, aliada a certa indiscrição, acabou por gerar situação constrangedora entre os irmãos. Para entendê-la é preciso diferenciar a renúncia à herança de outro instituto jurídico: a cessão de direitos hereditários.
Assim que o processo de inventário tem início, os herdeiros legítimos e testamentários – se houverem – têm um prazo para se manifestar quanto a querer ou não renunciar aos direitos e deveres da sucessão. Se não houver nenhuma manifestação nesse sentido, todos os herdeiros participam da sucessão normalmente. Ao contrário, como no caso de Arnaldo, o herdeiro que não quiser sua parte deve apresentar um termo de renúncia de herança. O artigo 1.806 do Código Civil dita que “a renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial”, de fato, ela é registrada no inventário. Com isso, o herdeiro não participa da sucessão e tampouco arca com qualquer pagamento de impostos. A renúncia é irrevogável, ou seja, uma vez que o herdeiro decide abrir mão de sua parte e assina o termo de renúncia, ele não pode retroceder.
E se Arnaldo tivesse filhos, estes poderiam requerer a herança para eles, a partir da renúncia do pai? Isso até poderia acontecer, mas em condições muito específicas. Por exemplo, se Arnaldo fosse o único filho e herdeiro do falecido, sua renúncia poderia definir seus filhos como os próximos herdeiros na vocação hereditária.
Outra situação: todos os herdeiros da mesma classe e grau renunciam. O que acontece? Neste caso, se Arnaldo, Roberto e as três irmãs – todos herdeiros necessários do falecido – renunciam, os filhos de Arnaldo e dos demais irmãos serão os chamados a suceder, pois se tornam, assim, os herdeiros necessários. E isso só é possível porque são netos do falecido e pertencem à mesma classe dos pais, mas em um grau posterior na linha sucessória. Enfatizando que a lei de sucessões aponta que herdeiros necessários são os filhos; se estes já faleceram ou se todos renunciarem, os herdeiros necessários são os netos. E ainda, se não existirem nem filhos nem netos, ou se estes renunciarem, são os bisnetos os herdeiros necessários.
Outro fato importante: Arnaldo é casado e só pode tomar a decisão e assinar o termo de renúncia sozinho porque o regime de bens de seu casamento é o da separação obrigatória de bens. Fosse outro o regime de bens adotado no casamento de Arnaldo, ele teria de contar com a anuência da esposa.
Como esclareceu o advogado – um pouco tarde, é verdade – com a renúncia, a parte de Arnaldo será dividida igualmente entre os irmãos. Se Arnaldo queria abrir mão de seu quinhão da herança e destiná-lo à Angélica, deveria ter cedido seu direito sucessório. Para isso precisaria ter feito uma cessão de direitos sucessórios por meio de escritura pública. Nesse documento, além de uma série de informações, constam os nomes do outorgante e de quem receberá os direitos de suceder, o cessionário. A cessão deve ser realizada após a abertura da sucessão, ao longo do processo do inventário. No caso da família citada, trata-se de dinheiro deixado pelo pai que, viúvo, decidira vender todo o seu patrimônio antes de morrer e vivia de maneira simples com uma das filhas.
A cessão de direitos hereditários também pode ser realizada por todos os herdeiros em beneficio de um só. Um bom exemplo é a situação do falecido que deixa cônjuge sobrevivente e filhos. Se o único bem existente for o imóvel onde reside a cônjuge sobrevivente, cujo direito de meação lhe concede apenas metade do imóvel, os filhos podem ceder à mãe a outra metade que lhes cabe de herança.
No caso de Arnaldo, sua parte foi dividida entre os irmãos e todos decidiram colaborar com a melhora de vida de Angélica. Afinal, nos assuntos de família, muita coisa também pode ser decidida para além do que está estipulado nos papéis.
O instituto da renúncia à herança é vasto e, como foi detalhado anteriormente, significa abrir mão de direitos e deveres. Mas afinal, em quais situações a renúncia é benéfica e válida? Detalharemos o assunto em breve!
*Ivone Zeger, é advogada
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