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Nota de Repúdio, Pesar e Justificativa

Por Luiz Fernando Costa de Andrade

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Eu, Luiz Fernando Costa de Andrade, venho por meio desta nota, enquanto coordenador executivo de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e responsável pelo Centro de Referência Afro – “Mestre Jorge” de Araraquara, manifestar por meio desta nota pública de repúdio, pesar e justificativa, as seguintes considerações acerca dos últimos estúpidos e tristes episódios assistidos por todos nós, milhões de pessoas, geradores de sentimentos intensos que vão da revolta imediata à tristeza e esgotamento, não das esperanças, mas de ânimo, diante da conjuntura absurdamente dramática, composta por uma crise de saúde e sanitária sem precedentes, uma crise política que nos coloca, a todos, a discussão inevitável sobre o respeito e observância à Constituição Federal e o pacto federativo.

Nos encontramos diante de uma crise política e institucional que se desdobra em acirramento de posições ideológicas, com consequências nocivas e violentas em todos os níveis e compreensões, principalmente no que tange a economia, afetando a vida principalmente dos mais pobres, categoria composta majoritariamente pelos grupos: População e Comunidade Negra, População e Comunidade LGBTQIA+, Mulheres, Juventudes, Pessoas com Deficiências, Crianças e Idosos, representados aqui pelas pastas políticas que compõe a Secretaria Municipal de Planejamento e Participação Popular, à qual respondo, e a qual estão vinculadas o Centro de Referência Afro e Coordenadoria de Igualdade Racial.

Humildemente representando todas e todos os envolvidos no cotidiano de trabalho da CEPPIR/Centro Afro, venho por meio desta, enfaticamente, tornar público o repúdio a toda forma de violência em qualquer nível ou dimensão da vida social, em qualquer lugar do mundo, por qualquer circunstância ou motivo, perpetrada por agentes públicos ou civis, contra qual ser humano seja, não só por ferir os princípios que norteiam a construção da Declaração Universal dos Direitos Humanos e as Constituições Democráticas e Republicanas Modernas, como a brasileira, mas, fundamentalmente, por ferir o respeito básico à vida, à existência segura e a dignidade. A ausência de tais princípios inviabiliza uma vida social com cidadania de qualidade e cria bases para a ocorrência de tristes eventos, como os recentemente ocorridos.

Em um mundo onde o racismo em todas as suas dimensões, ainda encontra resistência sobre sua existência, ao mesmo tempo em que sentimos e vivenciamos suas consequências – e para além dos próprios fatos –, temos certeza de que não só ele existe e é real, tanto quanto inconcebível em seus efeitos, como continua sendo causa fundamental de muitas perdas, dores e tristezas, vitimando de forma assustadora uma maioria de pessoas negras, se destacando nesse sentido homens negros (pretos e pardos, segundo categoria demográfica oficial), representados, nesse momento de ampla comoção, pelos casos do menino João Pedro, no Rio de Janeiro, e de George Floyd, em Minneapolis (EUA), brutal e cruelmente assassinados por agentes de segurança pública do Estado, um contrassenso, se observados as premissas teóricas e o papel prático do Estado para a manutenção da vida social.

Infortunadamente esses eventos não são isolados, se repetem há séculos, se confundindo com o próprio funcionamento social, denunciando o quão distantes estamos de fazer valer de fato os valores que consagramos e tornamos leis constitucionais, por exemplo. Ao mesmo tempo, não tão alarmados, ainda que reconhecidos, existem a subsistência e os problemas estruturais de sempre, que afligem a população negra, que se não resultam em morte imediata ou anunciada, tornam a vida dessas pessoas consideravelmente mais difícil em média, se comparado a pessoas pertencentes a outros grupos étnico-raciais, nunca esquecendo que a situação das populações indígenas é consideravelmente mais dramática, considerando que, sem exageros, estamos assistindo o extermínio dos últimos representantes das populações originais desta terra, e consequentemente da própria terra e suas riquezas, que servem ao fim a propósitos de morte e enriquecimento, concentrado nas mãos de poucos privilegiados.

Com muito pesar, primeiramente, desejamos força aos familiares e entes próximos das vítimas recentes desse drama secular. A discussão, o debate e a dor, são de todos, mas inexplicável certamente o sentimento e o que estão vivendo as pessoas mais diretamente ligadas a estas, e a tantas outras, milhões de vítimas que este continente tem, e já teve. Sentimos pesar por nossos limites, o que não nos impede de, como nesta oportunidade, manifestarmos nosso repúdio a todo esse histórico de violência e dor. Contudo, devemos nos colocar, como primeira e principal função, zelar e trabalhar para a existência e manutenção de mecanismos como desta política (CEPPIR/Centro Afro), atuando para que as perdas não nos façam esquecer que essa luta é cotidiana e composta por várias frentes, todas urgentes.

Respeitamos e sempre buscaremos auxiliar, enquanto política pública, todas e todos aqueles que procurarem este serviço, como não pode deixar de ser, assim como acolheremos críticas e todo tipo de intervenção que venha no sentido de por em questão a política da pasta e seu funcionamento, simplesmente por acreditar que é assim que poderemos fortalecer algo que é fruto de tantas lutas e mobilizações, tanto daquelas e daqueles que se posicionam militantemente diante do revoltante, quanto daquelas e daqueles que, independente dessa reação, entendem que fortalecer uma prática e uma troca cotidiana, para construção não apenas de políticas públicas efetivas, mas de participação popular, organizada ou não, é a própria razão de ser da política em tempos tão difíceis, sobretudo.

Entendemos e respeitamos a autonomia da atuação civil e de seu potencial, ela deve ser utilizada para todos os fins aos quais se propor a atuar, assim como fez ao construir, via conselho municipal, as bases da atual CEPPIR, e o Centro de Referência Afro, por meio do Orçamento Participativo. Todas as ações e mobilizações coletivas, estejam elas nas ruas ou nas atuais redes sociais devem ser respeitadas como voz coletiva legitima, denunciando, reivindicando e propondo soluções para os problemas existentes.

Acreditamos, ainda que não seja fácil, na possibilidade da existência de uma política pública atenta as necessidades gerais da sociedade civil, baseadas hoje em fundamentos universais, contudo, podendo atentar, para buscar compreender as especificidades dos grupos sociais e identitários, historicamente discriminados negativamente, que em consequência disto sofrem um acumulo, de desigualdades e desrespeitos, que são entendidos e comprovados por diversas pesquisas das diversas áreas do conhecimento e, principalmente, pelas pessoas que sofrem com isso diretamente, organizadas coletivamente ou não, e que entendem e desenvolvem consciência sobre como isso toca as suas vidas.

Respeitamos todas as reações, desde que não violentas, que partam dos setores organizados dos movimentos e coletivos sociais e políticos, em especial do movimento negro, e entendemos que enquanto órgão institucional submetido a diversas regras e seguidor de documentos normativos, nossas limitações e atribuições sempre serão a única justificativa para não estarmos plenamente ao lado das mobilizações populares, o que, em hipótese alguma impede que a crítica a nós e nosso trabalho, sejam realizado pelos mesmos, ou, que ignoremos nosso papel diante desta realidade.

Trabalhamos pela possibilidade de ampliarmos e qualificarmos não só as discussões políticas, acadêmicas, sociais ou culturais, mas para sermos fator de organização de ideias, propostas e mesmo de nossas interações, de modo que o diálogo seja constante e aberto, devendo alcançar todas as pessoas e coletividades deste município, bem como suas identidades, coletividades de referência, posições político-ideológicas, religiosas, dentre outros possíveis referenciais de vida e organização social. A violência e suas consequentes tragédias não podem ser mais banalizadas, naturalizadas e tratadas como mero evento midiático instantâneo e momentâneo, ainda que revoltante, comum e recorrente em nossas vidas, de efeitos nocivos multiplicados pelo acesso a elas via os meios midiáticos e jornalismo de todas as vertentes, que causam a todas e todos, aquelas e aqueles, minimamente sensíveis a causa, sofrimento psicológico, insegurança, desespero e medo.

A existência da CEPPIR/Centro Afro se funda na atuação e reivindicação do movimento negro histórico no Brasil, constante e incessantemente lutando por reconhecimento do Estado Brasileiro após 388 anos de escravidão e 132 anos de exclusão, marginalização e consequente genocídio, somado ao desrespeito às tradições culturais de matriz africana e afro-brasileira.   Colocado isto, repudiamos as ofensas proferidas pelo atual gestor público da Fundação Cultural Palmares, não apenas pela infelicidade das colocações, mas por falhar em um princípio básico do compromisso público, considerando o setor institucional que ocupa. Não respeitar os princípios legais e políticos de suas atribuições, perante um marco institucional normativo, amparado na Constituição Federal, atuando de forma evidentemente contrária a tais princípios, fere qualquer parâmetro de decência e comprometimento com sua, em tese, função e dever.

Ofender o ator político histórico responsável pela existência da pasta pública que atualmente ocupa e ignorar as várias vozes que se colocam hoje e historicamente na defesa do óbvio, pode ser lido também como reflexo das possíveis dificuldades enfrentadas no processo de construção institucional de políticas como CEPPIR/Centro de Referência Afro. Enquanto representante municipal de um órgão componente, a nível nacional, da mesma política, entenderia ser razoável a atenção desta Fundação aos famigerados eventos recentes que reafirmam a lógica racista e violenta, que também compõe o funcionamento da vida em sociedade em toda a sua complexidade, dia após dia.

Diante disso, sem dúvidas, entre nossas manifestações de repúdio, dor e revolta, precisamos todas e todos, a nível institucional e sociedade civil, colocar em discussão os 20 anos de reconhecimento, construção e implantação das políticas públicas voltadas para a população negra e para as culturas africanas e afro-brasileiras, bem como para o povo e cultura indígenas. As reações e respostas podem ser dadas imediatamente e a todo o tempo, assim como o trabalho coerente e responsável nas mais diferentes frentes e versões de problemas que sabemos serem estruturais e de difícil resolução, mas, que precisam ser enfrentados, sob pena de sermos todas e todos condenados a um mundo inviável. Sentiremos os impactos dos movimentos desse mundo em nosso querido município, sabemos das dificuldades econômicas resultantes da atual Pandemia, e a própria COVID-19 em si, consequentemente, além dos riscos anunciados que correm as populações mais vulneráveis.

Reafirmamos que respeitaremos nosso dever enquanto política pública de primeiro, e fundamentalmente, zelar e trabalhar para a existência, disseminação e fortalecimento de políticas como a CEPPIR/Centro Afro, que de fato contribuam para o fim de eventos trágicos como os assistidos, ao mesmo tempo, colaborando e promovendo, de fato, todas as promessas contidas nas legislações e documentos de referência pertinentes.

Somos responsáveis por uma luta não contra ninguém, mas contra o racismo e toda forma de violência. Lutamos por igualdade de diretos, oportunidades/recompensas e justiça social com respeito às diferenças culturais que compõe este país. Mesmo que aconteçam novos casos, particular ou isolado, enquanto principio republicano, e básico moral, não devemos responder a violência com violência, mas podemos e devemos lutar por vidas melhores, e exigir viver vidas melhores. Vidas negras importam e precisam ser respeitadas e melhor vividas.  É a favor da vida que nos manifestamos, do direito de existência da população e cultura afro-brasileira, do combate ao racismo em todas as suas dimensões e da real possibilidade de haver empenho para um projeto nacional que se traduza no contexto estadual e municipal com vistas à ampla garantia de direitos e propiciando o trabalho cotidiano, coletivo, transparente, leal e comprometido com o fim das impunidades e injustiças decorrentes do racismo cultural e estrutural. Um desafio enorme, contudo, possível de ser alcançado se tirarmos, em meio a tanta dor e tristeza, as lições que precisamos para melhorar nossas atuações políticas e a nós mesmos como seres políticos, diante, ainda, da imposição do racismo. Que não percamos o respeito e a fé.

*Luiz Fernando Costa de Andrade, é Coordenador Executivo de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Centro de Referência Afro – “Mestre Jorge”

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