A Lei da Liberdade Econômica foi sancionada no dia 20 de setembro de 2019 (Lei 13.874), quase coincidindo com o início da primavera, no Brasil. Isso faz lembrar de uma outra – a chamada Primavera Árabe – próxima de completar 10 anos, cujas causas vão além do que o conhecimento comum propala e que se liga à iniciativa brasileira.
O reconhecimento do direito de empreender como regra, limitado excepcionalmente, e não o contrário, a chamada liberdade de empreender, especialmente nas atividades de baixo risco, é o cerne da nova lei. Na Tunísia, onde começou a Primavera Árabe, a luta pelo mesmo direito é que desencadeou a onda de protestos que se espalhou pelo mundo muçulmano.
Mohamed Bouazizi foi o estopim do movimento, ateando fogo ao próprio corpo. Ao contrário do que a imprensa europeia noticiou no início, não era um trabalhador desempregado. Desde os 12 anos de idade ele trabalhava por conta própria, vendendo frutas e vegetais para alimentar sua família. Era um empreendedor informal.
Aos 26 anos, em outubro de 2010, cansado de achaques e humilhações pelos agentes do Estado, após ter suas mercadorias confiscadas, matou-se. Nos dois meses seguintes, outros 63 cidadãos também colocaram fogo no próprio corpo. Destes só 26 sobreviveram.
Hernando De Soto, economista peruano, passou dois anos entrevistando as famílias das vítimas e os sobreviventes, concluindo que o eixo central da convulsão social era a condição de empreendedores expropriados ou impedidos de exercerem suas atividades, seu ganha pão.
Tinham casas, mas não desfrutavam de direitos de propriedade; queriam investir, mas não podiam emitir ações ou não tinham acesso a crédito; pretendiam constituir sociedades, mas não tinham acesso a contratos; queriam limitar riscos, mas não tinham direito a responsabilidade limitada.
A semelhança com a situação brasileira não é coincidência. A nova lei segue o sentido geral de uma sequência de inovações, tendo como exemplos maiores a Lei Geral da MPE e a criação do MEI, que tentam fazer o Estado reconhecer a realidade social, já perto de uma situação limite. Os pequenos empreendedores formais e informais desde sempre são a regra, não a exceção. São a maioria esmagadora.
Certamente que a nova lei não resolve imediatamente o enorme passivo burocrático jogado sobre as costas desse enorme contingente, mas aponta um caminho necessário e inadiável, principalmente no âmbito dos municípios.
Uma nova agenda necessária e na mesma direção deve ser agora trilhada para regularizar e reconhecer a propriedade das moradias de milhões de famílias no ensejo de dar a elas melhores condições de acessar o crédito e gerar trabalho e renda.
Isso é basilar, conforme defende De Soto, pois formalizar os direitos de propriedade impulsiona o desenvolvimento econômico, considerando que a falta de garantias é um dos principais empecilhos para acesso aos serviços financeiros por cidadãos e empresas.
A pobreza e o subdesenvolvimento são reduzidos quando são removidas as barreiras legais e institucionais para a apropriação e transferência dos recursos econômicos produzidos informalmente. O que ele chama de “capital morto”.
A legislação existente, todavia, parece insuficiente e complexa para resolver essa questão tão importante, que atinge 50% dos imóveis urbanos e mais de 100 milhões de brasileiros, devendo ser discutidas formas de apoiar os municípios para o desempenho de suas prerrogativas no processo, ainda mais diante das limitações técnicas e econômico-financeiras da maioria deles.
A nova fronteira para a desburocratização é trazer para a regularidade bilhões de reais em propriedades que poderiam estar a serviço da melhoria das perspectivas de vida de metade dos nossos cidadãos, que estão há séculos reféns de cartórios, carimbos, tributos, taxas, alvarás de construção e outras exigências estatais que passam ao largo do mundo real.
Ainda bem que os nossos mártires são pacíficos.
José Constantino Bastos Júnior, Advogado e ex-secretário nacional de racionalização e simplificação
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