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2024 pode se tornar o ano com maior número de casos de dengue

O virologista Maurício Nogueira, da Famerp, fala das características da epidemia atual e da necessidade de o sistema de saúde se preparar para receber os doentes

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Pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Virologia da Famerp realiza testes rápidos de detecção de dengue

O médico e virologista Maurício Lacerda Nogueira conhece bem a dengue. Há quase 20 anos ele estuda a evolução do vírus causador dessa doença que, de tempos em tempos, causa epidemias no país e, em cada uma delas, deixa centenas de milhares de pessoas prostradas e com dores pelo corpo por vários dias. Ele próprio já foi infectado algumas vezes e, em pelo menos três ocasiões, desenvolveu a doença. “Me sentia miserável”, conta.

Nascido em Jaboticabal, cidade próxima de Araraquara, Nogueira formou-se em medicina na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde fez mestrado e doutorado. No retorno de um estágio de pós-doutorado nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos em 2004, instalou-se em São José do Rio Preto, cidade do interior paulista onde a dengue e outras doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como a chikungunya, são endêmicas. Sua missão era implantar na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) um dos laboratórios da Rede de Diversidade Genética de Vírus, financiada pela FAPESP.

Em um estudo que acompanhou parte da população da cidade ao longo de cinco anos, ele e seu grupo investigaram os fatores que levam ao desenvolvimento de quadros graves de dengue e como a imunidade evolui após a infecção. Também analisaram como ter tido dengue previamente influencia o quadro das enfermidades causadas pelos vírus das febres zika e chikungunya.

Mais recentemente, ele coordenou na Famerp um dos centros que avaliou o desempenho da formulação candidata a vacina contra a dengue desenvolvida pelo Instituto Butantan, a Butantan-DV, que apresentou resultados animadores em um estudo publicado no início de fevereiro (ver “Vacina do Butantan contra a dengue reduz em 80% o risco de adoecer”). “Os dados disponíveis até o momento sugerem que a vacina do Butantan é superior às outras”, afirma.

Em uma entrevista concedida por videochamada em 31 de janeiro, Nogueira falou do desempenho das diferentes vacinas disponíveis contra a dengue e chamou a atenção para o risco de a epidemia atual ser a maior já vivida pelo país e para a necessidade de o sistema de saúde se preparar para atender os doentes, uma vez que, com os recursos disponíveis, não é possível frear uma epidemia em curso.

Em janeiro, foram registrados 232 mil casos suspeitos de dengue, 2,5 vezes o total de janeiro de 2023. O que se deve esperar para os próximos meses?

A expectativa é que os casos subam de modo significativo até abril. Nos últimos 20 anos, o pico de casos ocorre entre o final de março e meados de maio. Em seguida, eles caem abruptamente com a primeira frente fria. Talvez 2024 se torne o ano com o maior número de casos suspeitos, e provavelmente confirmados, da história do Brasil.

No primeiro mês do ano, houve 15 mortes confirmadas por dengue. Em janeiro de 2023 foram 61. A dengue está menos letal este ano?

É difícil saber. Temos a tendência de olhar os dados como se a epidemia ocorresse de modo homogêneo no país. O comportamento da dengue no Brasil é diferente, por exemplo, daquele observado em Singapura, uma ilha. Lá uma epidemia se manifesta de modo mais homogêneo. No Brasil, vemos fenômenos distintos ocorrendo ao mesmo tempo. Em Belo Horizonte, há uma circulação intensa dos sorotipos 1 e 2 do vírus da dengue. No interior de São Paulo, uma região muito populosa, além dos sorotipos 1 e 2, temos muitos casos de chikungunya, que causa sintomas clínicos semelhantes aos da dengue e contribui para deixar os dados confusos. Em algumas regiões do país, o vírus do sorotipo 2 em circulação é de uma linhagem cosmopolita, enquanto em São Paulo a variedade é asiática-americana. Temos ainda notícias da introdução do sorotipo 3 em alguns locais. Além dessa complexidade, preocupa o fato de que alguns estados da região Nordeste historicamente muito afetados por dengue estejam relativamente silenciosos. Se o surto que está ocorrendo em parte do país chegar a esses estados, teremos a tempestade perfeita.

É possível distinguir os sintomas da dengue dos da chikungunya?

Clinicamente, é quase impossível [o médico não consegue saber qual é a doença a partir dos sinais que o paciente apresenta]. Um estudo feito anos atrás pela médica Maria Paula Mourão, pesquisadora da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, em Manaus, mostrou que a infecção por alguns desses vírus nem sempre despertava os sintomas clínicos classicamente atribuídos a elas. É tão difícil distinguir uma da outra que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, recomenda que tanto os casos suspeitos de dengue e quanto os de chikungunya sejam tratados como dengue.

Por quê?

Porque dengue mata. E mata rápido. Já a chikungunya evolui lentamente e raramente é letal. A mortalidade por dengue cai muito se os casos forem identificados no início e tratados. E o Brasil tem tradição em fazer isso bem. Uma consequência é que se acaba notificando tudo como dengue, principalmente em uma epidemia, quando nem sempre o diagnóstico laboratorial é feito. Tenho certeza de que um número significativo de casos de chikungunya estão sendo contabilizados como dengue neste ano.

O que a circulação simultânea de quatro sorotipos da dengue pode significar em termos de saúde pública? Podem ocorrer mais casos de dengue grave?

Caminha-se para um quadro de hiperendemicidade, que é a circulação simultânea dos quatro sorotipos do vírus. Vivemos isso de 2007 a 2010, mas não de forma agressiva, com cada um dos sorotipos predominando em uma região diferente e no máximo dois circulando ao mesmo tempo. A exceção foi Manaus, onde houve uma epidemia em 2010 ou 2011 com os quatro sorotipos.

Quais as consequências de um quadro hiperendêmico?

Infecções sucessivas por sorotipos diferentes favorecem a ocorrência da dengue grave, antigamente chamada de hemorrágica. Nos primeiros seis meses após a infecção por um sorotipo, o organismo fica protegido contra todos, por causa de anticorpos inespecíficos que permanecem no sangue. De nove meses a dois anos após a infecção, o nível desses anticorpos cai e facilita infecções por outros sorotipos. Esse fenômeno é chamado de facilitação mediada por anticorpos, ou antibody dependent enhancement, a ADE, e contribui para a ocorrência de dengue grave. Após dois anos, a infecção prévia nem protege nem agrava a seguinte. As consequências da circulação simultânea dos quatro sorotipos dependem de como será a dinâmica. Em São José do Rio Preto, tivemos em 2019 uma epidemia de dengue 2. Em 2022 e 2023, de dengue 1. Se o sorotipo 3 chegar este ano, haverá um grande risco de ocorrerem mais casos de dengue hemorrágica. Nos projetos com a prefeitura, financiados pela FAPESP, monitoramos os vírus circulantes na cidade. No passado, conseguimos prever um ano em que havia mais risco de uma epidemia com casos graves. Comunicamos à prefeitura e, em conjunto, fizemos um planejamento. (Ricardo Zorzzetto)