Home Histórias que a vida conta

Ignácio de Loyola Brandão no Jardim das Coxinhas Douradas

Há dez anos ele concedia entrevista no local que ajudou a transformar com uma crônica

642
O escritor Ignácio de Loyola Brandão

A entrevista a seguir foi concedida pelo escritor araraquarense Ignácio de Loyola Brandão no início de 2012, pouco mais de uma década após transformar, com uma crônica, o Distrito de Bueno de Andrada na Terra das Coxinhas. No bate-papo com o jornalista Luís Zakaib, sob o olhar atento do fotógrafo Lucas ART, ele relembra essa e outras histórias: a infância no centro, a paixão pelo cinema e pelo jornalismo. Conta também como saiu renovado após um aneurisma…

O encontro ocorreu propositalmente na Mercearia do Freitas. Antes, porém, conheceu o novo espaço, agora revitalizado, do qual tornou-se patrono, com direito à mesa cativa. Ignácio ficou especialmente fascinado com o novo jardim e com a visão empreendedora do casal Sônia e Paulo, proprietários do lugar. Após uma sessão de fotos pelo jardim, sentou-se ao lado de sua esposa Márcia, regados a coxinha e caipirinha. A conversa você confere a seguir.

 

Onde você morava em Araraquara?

Ignácio de Loyola Brandão – Em Araraquara, morei na Djalma Dutra, 695, entre as ruas Seis e a Sete. Meu pai morou lá até morrer, na mesma casa. Em 1951, ele fez uma reforma, mudou a entrada, mas nunca saímos daquele canto.

 

Você escrevia na época em que vivia aqui?

Eu era muito bom em redação. A escola ficava duas quadras pra cima de casa. Era da Cristina Machado, a mãe dela era minha madrinha. Naquela época, as madrinhas cuidavam da orientação espiritual e ela era muito católica.  Aí vendeu a escola para Lourdes Prada. Estudei ali. Minha vida foi entre as ruas Seis e Oito. A avenida São José era o limite. Pra baixo, onde é a Rodoviária, era mato e chácara de vaca leiteira.

 

Foi nesse cenário que passou toda a sua infância?

A infância, entre 7 e 10 anos, era ali. Íamos também no córrego da Servidão, o “rio das bostas”, que passava para baixo da rua Dois, depois do barranco. Ele foi canalizado e hoje é a via Expressa.

 

E ia ao cinema desde menino?

Sim, eu ia às matinês. Meu pai não podia financiar, então eu vendia abacate – em casa tinha um pé. As pessoas compravam para ajudar. Às vezes catava vidro e ferro para conseguir dinheiro para a matinê, ou tentava enganar o porteiro e entrar.

 

Foi o que o levou ao jornalismo, certo?

Eu gostava de cinema, tinha 15 anos, mas não podia pagar. Soube que o crítico não pagava ingresso. Fui à Folha Ferroviária, perguntei e não havia crítico. Eu lia muita crítica nos jornais de São Paulo e Rio que chegavam à Biblioteca – Diário do Rio, Folha, Cruzeiro -, recortava tudo, tinha um puta arquivo. Aí fiz uma crítica. Depois escrevi no Correio Popular, até que um dia o jornalista Paulo Silva me chamou para O Imparcial. Eu tinha 16 anos.

 

Como era o jornal naquele tempo?

Era diário, tinha redação e uma boa biblioteca. Aprendi a fotografar, imprimir, linotipar, fazer clichês – naquela época eram de zinco. Eu ia lá para ler livros. O Paulo era do Centro Intelectual dos Jovens Araraquarenses. Descobri Faulkner, Oswald de Andrade e outros lá. Aí, um dia ele me entregou um papel e falou ‘olha, tem um sujeito que é parente do Tenório Cavalcanti, famoso político do Rio, vai lá e pergunta essas coisas’. Fiz a entrevista, deu certo. Escrever eu sabia, porque tive uma boa professora.

 

Aí começou a fazer reportagens…

Era uma vida diferente dos empregos que tinha na cidade – comerciário, bancário, contabilista. O jornal era muito mais interessante, fui me apaixonando, porque era gostoso. Lembro uma vez, em 54, 55, Carlos Coimbra, diretor de cinema, veio dirigir em Tamoio o  filme ‘Armas da vingança’, alguém comentou com o Paulo, que me disse ‘vai pra lá, tem o Hélio Souto, ator muito conhecido, galã, canastrão, boa gente’. Fui pra lá e passei o dia. O Helio Souto casou com a sobrinha do Hélio Morganti, dono de Tamoio.

 

Sempre o cinema…

O cinema da Vera Cruz estava na minha cabeça. Continuei a fazer críticas, fundamos até clube de cinema. Em 53 tinha feito com parte do grupo Teca o ‘Aurora de uma Cidade’, semi-documentário que contava a chegada do Pedro José Neto da cidade. Eu e o Wallace [Leal Valentim Rodrigues] fizemos o roteiro e fui assistente de direção dele.

 

E quando você decidiu: ‘eu quero ir pra São Paulo, não quero ficar aqui’?

Com 20 anos eu fui embora e desde então estou lá. Cheguei e fui trabalhar no Última Hora. Peguei o trem, meu pai me deu três mil cruzeiros, tudo o que ele podia dar. Todo mundo ia, não tinha o que fazer aqui além de Farmácia e Odontologia. Quem queria fazer arquitetura, Medicina, Direito, Filosofia. A Unesp veio depois. Onze dias depois estava empregado. Quando cheguei, soube que tinha uma vaga lá. Fui repórter, colunista, fazia a coluna São Paulo Confidencial. Fui chefe de reportagem, diretor de redação. Isso até 64. Teve o golpe militar e fui pra Revista Cláudia.

 

Seu primeiro livro foi no fim da carreira de Última Hora. Quantos são ao todo, hoje?

Hoje são 37, contando tudo menos os institucionais, como o Itaú 50 anos e a biografia de  Olavo Setubal. O da Ruth Cardoso eu conto, sim, pois foi muito especial pra mim.

 

Você passou por várias publicações, morou em outros países, mas teve um momento em sua vida que você tomou um susto. Foi quando teve o aneurisma. Como foi receber essa notícia?

Em 96. Foi muito complicado pra mim porque era a coisa que eu mais tinha medo. Eu tinha feito, como repórter, a morte da Cacilda Becker, que teve um aneurisma no palco, pouco antes um repórter de 26 anos tinha morrido de aneurisma, uma jogadora da seleção paulista de basquete tinha tido durante um treino. Não tem sintoma, quando tem sintoma está estourando e tchau. Descobri num exame de rotina e tive que enfrentar, eu não sabia se ia morrer ou não. O pior é que você entra numa espécie de limbo. Fica insuportável, chato. O último capítulo do livro ‘Veia Bailarina’ eu dedico a Márcia, minha esposa, que me aguentou. Era uma cirurgia que poderia ser fatal e, se não fosse, ter sequelas, podia ficar cego, surdo mudo, virar um vegetal.

 

O que sentiu cinco minutos antes da cirurgia?

Nada, me deram uma puta de uma injeção…

 

Antes disso…

Era uma agonia, mas eu dizia que estava muito calmo. Não tinha medo de morrer, tinha muito medo de sequelas, ficar numa cadeira de rodas… Tive de assinar um contrato no hospital autorizando a cirurgia mesmo sabendo que podia morrer, ficar paralítico entre outras 15 mil coisas que podia acontecer. Tinha 60 anos e estava num momento meio louco, não queria mais escrever, estava cheio, trabalhava na Vogue, uma revista muito interessante, bem cuidada, com grandes fotógrafos, designs, mas não era o meu sonho de vida.

 

Aí deu tudo certo e você escreveu ‘Veia Bailarina’…

Percebi que estava vivo. Disse: ‘foda-se, tô vivo’. Preocupar-me com que? Em viver. Aí voltei, já estava fazenda crônica e descobri que esse era um caminho pra mim.

 

Aí começou uma produção frenética de livros…

Acabei de escrever um livro que adorei. Foi a “Morena da Estação”. Tem memória, mas tem lendas e mitos também. Escrevi também “Acordei em Woodstock”, sobre uma viagem que fiz dez anos atrás aos Estados Unidos. Sempre faço um diário de viagem, guardo bilhetes, ingressos, cardápios, anoto o que comi, bebi. Um dia, em Nova York, fui à livraria, na seção de cinema e encontrei um livro que há 15 anos procurava. Não havia encontrado em Paris nem Veneza. Era um livro de fotos sobre as filmagem de “Oito e Meio”, de Felini. O livro tem um capítulo sobre disso.

 

De novo, o cinema. Você tem uma forte ligação com a obra do diretor italiano Federico Fellini. Na introdução do livro ‘A altura e a Largura do Nada’, você o cita…

Fellini nasceu em Rimini e foi embora pra Roma, do interior à capital. Eu em Araraquara e fui pra São Paulo. A Rimini que ele mostra no filme ‘Os boas vidas’ era a Araraquara da minha  juventude, com bailinhos, namoros, sonhos.

 

E como você vê Araraquara hoje?

O interior que eu morei não existe. Fellini disse: ‘Rimini só existe na minha imaginação’. Araraquara só existe na minha imaginação. As mudanças econômicas do País, do mundo, a mudança social, tudo isso, esse interior é uma aglomerado de cidade, todas ligadas. Não tínhamos telefone, jornais chegavam pouco, informações eram precárias, só tinha rádio. A trajetória de vida resumia-se a empregos locais. As pessoas que iam pra capital, formavam-se  e voltavam. Minha geração foi uma das primeiras que foram para nunca mais voltar. Hoje não é preciso mais sair do interior. Você pode fazer livro, televisão, jornal aqui em Araraquara. O jornal que vocês fazem é completamente diferente do meu, que era artesanal, amador, pobre. Hoje tem o mundo da internet, globalização, facebook. Se eu quero um hotel em Paris, procuro e vejo até dentro do quarto, faço a reserva e vou embora. Paris era um sonho. Hoje vou quantas vezes eu quiser, mesmo porque tem a CVC.

 

Aliás, você acabou de escrever um livro sobre a CVC…

Adorei escrever. Guilherme Paulus é um sujeito de Santo Andre, no interior, que 40 anos antes de o Lula falar da classe C, ele descobriu a classe C. Fazia barato e vendia muito.

 

Voltando ao cinema, um livro seu, “O Menino que vendia palavras”, vai virar um filme. Já foram adaptados texto seus de “Anuska e Bebel que a cidade Comeu”. Agora é um livro infantil…

É, Anuska e Bebel, que foi um filme que gostei. Um grupo de Teatro do Rio queria adaptar “O Menino” para Teatro. Autorizei mas fiquei com medo, até assistir à peça. Eles pegaram a história e a deixaram mais moderna. Tem um momento em que um dos atores pede palavras para as crianças. Teve uma grande interação. Eles depois me procuraram para dizer que queriam fazer um longa-metragem, Autorizei. O livro é meu filho, a peça é meu neto, o filme será o bisneto. É a criação provocando a criação. Eles tentaram se apresentar por aqui mas não estão conseguindo. Araraquara ainda tem dessas coisas.

 

Eu gostaria de ver “Não verás país nenhum” adaptado no cinema. E você, qual livro gostaria de ver nas telas?

“Não verás” também. Vários tentaram e eu não quis. Ou se faz uma produção monstro ou não dá, tem que ser uma coisa macro, ‘Blade Runner’. Por isso nunca cedi os direitos. “Dentes ao sol” eu gostaria de fazer, mas tinha que saber dirigir e não sei.

 

Na sua opinião, como está Araraquara em relação à cultura?

Depois que o Sesc veio, deu uma mudada. Tenho dois sobrinhos que, desde que o Sesc inaugurou, eles vão em tudo. Um deles disse: “Em um ano eu vi o que não vi em 35 anos de vida”. Não tinha, não acontecia. Temos um Teatro Municipal, por que não vem coisa para cá? Falta estrutura cultural, acabou a Sessão Zoom, que exibia filmes e vinham diretores para debate. Acho curioso que a Unesp acaba sendo uma ilha isolada dentro da cidade. Qual a relação com a cidade, o que oferece, que porta ela abre?

 

Não seria o troco, já que Araraquara se fechou por muitos anos aos estudantes?

O araraquarense sempre foi fechado às pessoas de fora.

 

E as coxinhas da dona Sonia continuam saborosas?

O que é surpreendente é essa mulher, simples e humilde, que já transformou tudo, dá emprego, paga imposto, movimenta esse lugar. E fez esse recanto bonito e agradável.

 

Você tem influência nisso. Depois daquela crônica sobre as coxinhas douradas de Bueno de Andrade, há mais de dez anos, tudo mudou por aqui.

Era uma cidade morta e virou um point. É o poder da palavra… Nós que escrevemos não temos a mínima ideia desse poder. Foi pura inspiração pelo ocorrido. A Márcia queria ir a Silvania, onde passou a infância. Paramos para tomar um guaraná. E vi a coxinha.

 

Para finalizar, quem é Classe A para você?

São as pessoas que encaram a vida de maneira diferente – não precisa ser celebridade, famoso, consumir -, que descobrem uma maneira de viver simples, tranquila, se entregam ás pessoas em volta, fazem alguma coisa pelo próximo. Enfim, são esses que estão olhando pelos outros. gostaria de ver mais gente assim aqui.

Publicado originalmente no jornal Tribuna Impressa em 2012 (com edição atualizada pelo autor)