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Dia Internacional da Mulher: A luta de Abigail para construir o Lar Nosso Ninho

Nesta data homenageamos Abigail Machado Callera, fundadora do Lar Nosso ninho. Entre os históricos documentos do lar encontramos O Diário de Abigail, escrito por ela a partir de 1960, narrando fatos que vão do preconceito dos vizinhos para com as crianças deficientes à falta de apoio das autoridades da época.

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Abigail, fundadora do Nosso Ninho, certo dia relembrou orgulhosa os difíceis, porém compensadores momentos da entidade. Um deles vindo de um Juiz de Menores que lhe alertou para as dificuldades que enfrentaria. Ela foi em frente.

O Portal RCIA teve acesso ao relato dramático de Abigail Machado Callera, fundadora do Lar Nosso Ninho, escrito por ela mesmo em 1960, quando sozinha começou a recolher nas ruas da cidade os menores deficientes, levando-os para sua casa, sob protesto dos vizinhos que viam sua ação como um problema material.

“Eu comecei a levar crianças deficientes para minha casa em 1960; tinha três menores, Vera Lúcia, Lucy e Orlando, depois Odete, etc… Não consigo parar mais”. É assim que Abigail Machado Callera abre seu diário, escrito a partir do instante que sentiu a mão divina repousar em seu ombro para uma missão.

Abigail e Odete, uma das primeiras crianças do Lar Nosso Ninho

Neste livro guardado a sete chaves, ela explica como se deu a fundação do Lar Nosso Ninho, casa destinada a assistir excepcionais e deficientes auditivos, de 3 até 18 anos, desde que se enquadrem aos objetivos da entidade, que para sua educação e reabilitação visem seu entrosamento na Sociedade e Família e caminhar para que ele sobreviva. Seria isso maravilhoso não houvessem as pedras no caminho de Abigail.

“No ano de 1960, em maio, trabalhando na Casa Betânia, fui em busca de uma menina que fora abandonada pela mãe em uma casa vazia. Estava só com um ursinho nos braços e sem documentos, sentada em um caixote. Tinha mais ou menos de 3 a 4 anos de idade. Foi morar em casa. Levei-a depois para Ribeirão Preto ficando em uma casa para cegos, pois a menina era cega-surda.” (trecho d’O Diário de Abigail)

08 de junho de 1962. Nice vem buscar Vera Lúcia e Odete para levá-las ao padre Chico.

Ela conta que a partir daí, começou a pensar nas crianças, que por serem excepcionais, é que mais necessitavam de cuidados e educação especial; as famílias e a sociedade nada faziam para ampará-las e humanizá-las. Em seu diário afirma: “Senti que mesmo sem preparo e sem ter conhecimento algum, eu poderia fazer algo por essas crianças.

“Uns dias depois, quando voltava de uma coleta para o Lar Juvenil, encontrei uma menor de mais ou menos oito anos, encostada no muro da esquina da Avenida XV de Novembro com a Rua São Bento, e quando cheguei perto dessa menor, ela estendeu-me a mão e vi com espanto que era cega e também surda, toda suja e com os pés inchados e feridas pelo corpo. Senti que tinha que fazer algo.” (trecho d’O Diário de Abigail)

Abigail narra em seu diário, que levou a menina para a Delegacia de Polícia, convicta de que poderia obter ajuda, porém, como não havia um lugar para deixá-la, levou-a para sua casa. “Ao tomar leite a menina desmaiou; depois dormiu 12 horas seguidas e acordou sorrindo. Chamei-a de “Odete Risões. Nunca foi procurada por alguém”, diz Abigail.

Regina pediu a Orlando para escrever a palavra barco. Na lousa ficou “o barco é grande”

Interessada agora em criar um lar que desse abrigo as crianças, Abigail foi conversar com o Juiz de Menores no fórum da Rua Padre Duarte com Avenida São Paulo. “O Juiz Lofredo Júnior me fez sentir todas as dificuldades que eu ia enfrentar. Mesmo assim fiquei com as menores em casa, pedindo a proteção divina para que tivesse forças de continuar”, diz.

“Conheci a professora Nice Tonhozi Saraiva, que neste ano fundou uma classe especial para cego- surdo. Ela levou a Vera Lúcia que estava em Ribeirão Preto e a Odete para São Paulo ao padre Chico nas classes especiais. Tinha uma vizinha, a dona Jacira, me ajudava a cuidar das menores. Vera Lúcia chegou a ser operada da vista, mas pouco adiantou.” (trecho d’O Diário de Abigail)

… E foram chegando as crianças. Luci, Orlando, Jessum, Pedro. Eles ficavam em um salão sem muito luxo, mas bem tratados por Abigail. Ela sentia que o pouco que fazia por eles, eram bem recebidos e eles se transformavam em gente. “Isso tudo até que chegou o dia em que meu marido me fez sentir que não era possível continuar – graças a Deus nossos filhos, foram ótimos e compreensivos. Novamente Abigail foi falar com o Juiz Lofredo Júnior que insistia em dizer das dificuldades que ela encontraria pela frente se continuasse a acolher as crianças. Um milagre então aconteceu em sua vida.

O Lar-Escola começou com cinco menores: Luci, Orlando, Jessum, Pedro e Vera Lúcia que voltou pois Luci por motivo de doença não pode continuar com as classes em São Paulo.

O carinho dispensado às crianças no momento de ensinar

O nome “Nosso Ninho” foi colocado por ser aconchegante, porém, quando a documentação seguiu para São Paulo, Dom Domênico, no Guarujá, havia solicitado para iniciar suas obras com creche e hospital maternal. Com isso, ficou “Nosso Ninho Terezinha Maria Auxiliadora”, em homenagem à filha do juiz Lofredo Júnior, que falecera há pouco em gratidão ao muito que ele ajudou. O Nosso Ninho teve como primeiro presidente Abigail, secretária Hélia Baseli, tesoureira Maria de Lurdes Arruda e conselheiras Maria de Lurdes Callado, Clóvis Sudelfild e Maria Helena Paraíba.

“Hoje, 15 de abril de 1963. Primeira refeição no lar. Com uma funcionária iniciamos a obra. Sofri vexames sem conta. Tive que deixar de trabalhar na Betânia para poder continuar a obra. Há dias que não dá vontade de continuar, mas ao chegar perto das crianças, elas confiam tanto em mim, sorriem que eu fico cheia de força e de Amor, pois meus braços não estão vazios. Se eu não luto por eles quem fará isso? Ninguém imagina como está sendo difícil. Vamos continuar com a ajuda do Juiz Doutor Geraldo Amaral Arruda.” (trecho d’O Diário de Abigail)

Foi com o apoio apoio do Dr. Geraldo Amaral Arruda que o Nosso Ninho conseguiu uma classe especial no Grupo Escolar Antônio J. de Carvalho, sendo nomeada a professora Regina Fioroti. As aulas foram iniciadas no dia 17 de maio de 1963.

A casa da Rua Carlos Gomes, 1546, foi um grande desafio para o lar: seus encanamentos velhos não funcionavam, o esgoto também não. Abigail ia buscar água na escola ou então num açougue da esquina.

8 de dezembro de 1964, o lar inaugura sua sede na Carlos Gomes; em 1982 deixa este prédio e se instala na Rodovia Araraquara-Américo

“Os vizinhos não queriam as crianças. Chorei muito. Eu tentava incutir  e fazer todo mundo aceitar a criança “diferente”. Eu sentia que havia diferença nas crianças e muita. Sufoquei em mim, tantas coisas e sentimentos: horas calmas,  passeios, sobrecarreguei meu trabalho em meu lar; tinha que fazer tudo bem, para que meus familiares não notassem diferença sobre nossa vida particular, mas eles compreenderam meus objetivos e ideais. Ozir Najn diz que sou a jardineira para cuidar das flores, mas as flores precisam de cuidados, Amor e Pão. Estamos lutando.” (trecho d’O Diário de Abigail)

Para espanto dos diretores do Nosso Ninho, o delegado de ensino – Clóvis, transferiu a classe especial do grupo escolar para a obra. Durante o dia era sala de aula e à noite Abigail colocava as camas em cima das carteiras parra as crianças dormirem. A transferência parecia proposital para que as crianças sadias não se misturassem com os especiais na escola. Era agosto de 1963.

Abigail comenta que os sofrimentos estavam passando da conta. A cozinha era anexada aos quartos; as roupas das crianças eram levadas para serem lavadas em outro local. A todo instante em seu diário ela agradece a força divina.

Em 1964 Abigail iniciou campanha para casa própria promovendo rifas e recebendo donativos; a Prefeitura Municipal disponibilizou uma verba. Assim foi comprada uma casa velha na Rua Carlos Gomes, 734. Era uma espécie de estábulo, sem portas e animais no quintal. Uma pequena reforma e limpeza foram feitas e no dia 8 de dezembro de 1964, as crianças estavam em novo abrigo que custou CR$ 1.400,00. As crianças, revela Abigail, viviam felizes e em cerimônia simples, uma oração de agradecimento foi feita naquele dia. Pedimos amparo, proteção e fé para que o Nosso Ninho consiga vencer as dificuldades.

A primeira turma acolhida pelo Lar Nosso Ninho, ainda numa sala existente num sobrado na Praça Pedro de Toledo; o espaço foi cedido até que se conseguisse uma casa para o lar. Essas crianças eram abandonadas pelas famílias e Abigail as acolhia.

“Financeiramente não temos nada; para alimentar as crianças é preciso sair às ruas e pedir diariamente. É difícil a educação de um menor excepcional. Elas chegam famintas, mal cheirosas pelas suas deficiências, precisam aprender até respirar. Abandonadas pelos seus pais temos que conquistá-las.” (trecho d’O Diário de Abigail)

Logo o lar tinha duas professoras: Regina Fioroti e Maria Elisa de Oliveira Geribelo que chegou através da Fundação do Livro para o cego, especializada na matéria adjunta à Delegacia de Ensino de São Carlos. A partir daí, a procura por vagas no Nosso Ninho aumentou consideravelmente.

As crianças passaram a ter convivência com outras atividades como fazer tapetes e sacolas que eram vendidas para aumentar a arrecadação da entidade. As classes especiais foram transferidas para a casa, ficando uma sala só para as aulas. Era 1966 e o Lar Nosso Ninho já imaginava sua ampliação.

Era 1974. O sonho de Abigail estava concretizado. O lar recebeu em doação do município uma área de 28 mil m² na estrada Araraquara-Américo e lá começou a construção de um novo prédio, que atualmente abriga 80 crianças portadoras de necessidades especiais. Há casos em que, abandonadas pela família, permanecem lá. José do Carmo, o Zézinho, é um deles. Chegou criança e hoje tem 58 anos.

Observação: Abigail Machado Callera, faleceu no dia 24 de janeiro de 2018, aos 92 anos de idade. Dados extraídos originalmente do seu diário, quatro anos antes da sua morte pela Revista Comércio, Indústria e Agronegócio – RCIA.