Isaac (Isaac Jorge Simplício) era negro. O conheci porque ele era funcionário de Adolpho Tedeschi Neto. No começo de nossa amizade tive uma doce inveja daquele jovem, três ou quatro anos mais velho do que eu. A inveja vinha porque no exercício de seu trabalho tinha o poder de dar pequenos passeios com as motocicletas dos clientes quando, amando do patrão, ia buscá-las ou devolvê-las por força da manutenção mecânica.
De estatura baixa, era forte e tinha o cabelo Black Power, estilo Toni Tornado, tão comum no início dos anos 70 e ainda usava óculos grande, padrão Elton John. Andava sempre de camisa branca sem colarinho, por dentro de uma calça Jeans presa por um largo cinturão niquelado, que ostentava um símbolo hippie igual ao que Marcos Placco exibia, indumentária que o transformava num jovem de postura e personalidade marcantes. Acumulava também conhecimentos de música e, acompanhando Victorinho Barbugli, em seus saraus, praticava como “bico” trabalhos de DJ.
Sempre nos fins de semana, Tedeschi lhe emprestava para suas andanças uma motocicleta, ainda que de pequena cilindrada, mas que aos olhos de quem não o conhecia, no conjunto da obra, dava-lhe um ar de soberbia. Sempre soube que ele tinha duas irmãs, uma mais velha de nome Nazaré, da outra e de seus pais eu nada sabia.
No período que antecedia uma competição, crescia sua importância dentro da oficina. Pró-ativo, sempre estava pronto a servir.
Certa oportunidade, em corrida a ser realizada na cidade de Cubatão-SP, Tedeschi, que também acumulava o cargo de chefe da equipe do Moto Clube Araraquara, o incumbiu de formar a lista da comitiva para a viagem, neste caso era sua atribuição principal confirmar presença se, ao mesmo tempo, já ir recebendo adiantado o montante que cada um teria de arcar.
Como nesta prova eu queria muito ir também, era ele o meu contato e o dono do meu “passaporte” para realizar os sonhos de acompanhar a equipe e, ao mesmo tempo, conhecer o mar, passeio que estava incluso no pacote. Dessa forma, todo o dia que eu, ainda de bicicleta, o visitava para pagar minha parte e ele, com bastante jogo de cintura, não dizia nem sim e nem não e também não pegava meu dinheiro, de maneira que minha ida não se confirmava.
O ambiente de corrida ia tomando o local e no sábado, anterior à prova, nos aprontes que faziam, eu ficava encantado com a destreza com que Celso (Baiano Faito) Martinez conduzia o acerto de sua Italjet. Ele com aquela motocicleta Italiana, motor 2 tempos, que produzia um som fino, alto e estridente, que ao mesmo tempo soltava pelo escapamento muita fumaça, resultado de uma rica mistura de gasolina azul de avião com óleo Castrol R, exalando um odor inconfundível, saia e dava voltas naquele quarteirão ainda inabitado e retornava para dentro da oficina mexendo muito num tal de carburador marca Dellorto. Minha admiração vinha de seu exímio talento em pilotar aquela veloz motocicleta e na proximidade de idade que enxergava entre nós, o que aos meus olhos, aumentava minha chance de um dia muito próximo ser igual aquele “menino”.
Aquele odor inconfundível expelido por sua moto, uma única vez sentido por um apaixonado por competição de velocidade já era o suficiente para se tornar inesquecível. Seu “cheiro”, comentado à boca pequena, era o ópio do piloto para o resto de sua vida.
A semana do evento foi transcorrendo normalmente e quinta-feira, véspera de feriado à noite, o caminhão contratado junto a empresa Rápido Transporte de Araraquara (Andrea Aragoni e João Chile) encostou defronte ao modesto barracão da oficina, ponto de partida, na rua 6 esquina com a avenida 40, iluminado precariamente apenas pelo único poste público ali existente,foi cuidadosamente sendo carregado. Primeiro as motocicletas, depois ferramentas, galões de gasolina de avião, pneus sobressalentes, cordas para improvisação de boxes no local da prova e,finalmente,alguns colchões para, naquela carroceria, servir de cama na viagem aos transportados.Eu tinha quatorze anos e uma vontade imensa de ir; assim, na primeira oportunidade, subi no veículo e fiquei num canto quietinho.
Prontos para partir, Isaac foi fazendo a chamada e confirmou todas as presenças sem, no entanto, citar o meu nome. Ato contínuo, de pé no asfalto, no alto de sua autoridade, com olhos de lince me fitou determinando: “Desce… pode descer… desce, desce! Você não vai… criança não pode ir.” Implorei, choraminguei, blasfemei, mas não teve jeito. O caminhão partiu e eu, infelizmente, não fui. Voltei para casa muito triste e carreguei esta decepção por um bom tempo. Dois anos depois daquele dia eu já era um deles, dando pequenos passos nas pistas, atrás dos meus ídolos.
Naquele fim de semana, já em Cubatão, coisas ruins, boas e maravilhosas aconteceram. Tudo ao mesmo tempo: primeiro, por um erro primário da coordenação da prova, Baiano e Zé Faito sofreram nos treinos um gravíssimo acidente,que os manteve hospitalizados por um período naquela localidade. Vadão Meireles e Paulo Pecin, também envolvidos no ato, escaparam ilesos, com pequenos arranhões. De bom foram as ótimas performances na corrida de Paulo Pecin, com sua moto Zundapp, e Negão (Luiz Antonio Candido), com sua Italjet, que chegaram em terceiro e quarto lugares respectivamente. Maravilhosa foi a brilhante vitória de Evaldo Salerno, ratificando naquele momento da história o prestígio de ser um dos melhores pilotos do Brasil na sua categoria. Sua participação foi com a motocicleta Italiana de marca Mondial, equipada com cilindro e cabeçote de alumínio da marca Brevetto especialmente importados por Joaquim Caratti e magnificamente preparados por José da Penha Moreira. O segundo lugar da prova ficou com uma YAMAHA, assistida pelo representante japonês da fábrica aqui no Brasil.
Em um de nossos derradeiros encontros, na Oficina da família Faito, ao som de Rod Stuart e Creedence, regado de churrasco e muita cerveja, Isaac,quando questionado pelos presentes do porque do meu “corte” na viagem, naquele dia do ano de 1971, primeiro ratificou: “‘Baralho’, ele era um moleque, um moleque pô!”, para depois, logo em seguida, gargalhando de sair lágrimas, me abraçou forte e gritou: “Eu não mandava nada, nada, nada… quem mandava era o Nego”. Nego, para os mais íntimos, é Adolpho Tedeschi, cabelo loiro encaracolado, de olhos azuis e uma mistura genética com traços de Bud Spencer e Terence Hill.
Quando agora perguntei para Salerno sobre a sua vitória, ele minimizou dizendo que ganhou porque as Yamahas não andaram bem. Puro gesto de humildade, pois, para os outros que questionei a mesma coisa, a resposta foi unânime: PURO MERECIMENTO, O CARA ANDOU MUITO.
Velhos tempos, Belos Dias…
Texto: Benedito Salvador Carlos (Benê)