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Rebeldes, mas bons de bola, assim era o Flamengo da Vila Furlan

Muito difícil precisar a popularidade de um e de outro. Zito Melhado estava para as ruas e avenidas sinalizadas por ele, como o Flamengo para os gritos de gol que ecoavam pela cidade. O bairro nascido às beiras da Via Expressa nos anos 50, mandava dizer que se orgulhava dos dois filhos ilustres: um de segunda a sexta a serviço da Prefeitura e o outro nas manhãs ou tardes de domingo, nos campos de futebol. (Por Rafael Zocco)

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Álvaro Fleury Fina, Faixa, Milton Sambista, Demá Prado, Zinho, Ditinho e Tutu; Nenê Bahia, Aristides, Jordão, Itamar, Palhares e Belleti, uma das mais tradicionais formações do Flamengo da Vila Furlan

José Melhado Filho, o “Zito Melhado”, nos seus 120 quilos distribuídos em pouco mais de 1,60m, andava de forma desajeitada naquele final de tarde pelas ruas de Araraquara, quando o prefeito Rubens Cruz lhe pediu para refazer a sinalização da Bento de Abreu.

A cidade estava se preparando para sediar os Jogos Abertos do Interior. Já era setembro de 1969, e precisava estar com os canteiros da Bento de Abreu em ordem, as ruas bem demarcadas, isso quando nem semáforo existia (parava na Nove de Julho com a Barroso).

Zito Melhado

Zito trabalhava na Prefeitura e cuidava da sinalização. Ele era uma referência para a Vila Melhado; embora residindo no bairro, Zito já havia ocupado o cargo de presidente de um time chamado Vasco da Gama, fundado em homenagem ao Vasco da Gama do Rio de Janeiro que viera jogar contra a Ferroviária na inauguração do Estádio da Fonte Luminosa em 1950. Depois ele foi treinador da Atlética Ferroviária (1978), dizendo que entendia de tática como ninguém.

Curiosamente, o Flamengo nasceu sem Zito Melhado apesar de ser o homem mais conhecido no bairro e grande esportista. Certo dia, Luizinho Garcia foi convidar o Zito para ser o presidente do Flamengo: “Luizinho, não posso; vocês são muito rebeldes”, mas à distância ele acompanhou por um bom tempo o time da Vila Melhado. Zito veio a falecer em setembro de 1991, aos 62 anos, mas tanto quanto o Flamengo foram eles os maiores propagandistas do bairro, um folclórico personagem do nosso futebol.

Final dos anos 60: Grecco, Kawazani, Milton Sambista, Zé Luiz, Demá, Oswaldão e Faixa (técnico); Álvaro Fleury Fina, Aristides, Tonhão (ex-Ferroviária e Palmeiras), Itamar, Meireles e Betinho

Flamengo, orgulho da grande massa brasileira, pois há sempre um flamenguista escondido pelos cantos de uma cidade. Mas por que não Palmeiras, São Paulo ou Corinthians, para ostentar o nome de um time de amigos do bairro dos anos 60?

– Que tal São Paulo? – indagou um jovem que insistia nos nomes dos times da capital.

– Ah, um time com nome daqui do Estado não quero – respondeu um garoto no auge dos seus 15 anos de idade.

– E que tal Flamengo? Flamengo da Vila Melhado? – retrucou o outro, franzino, mas de mesma idade, que tinha como ídolo, Berico, na época em que defendia o Guarani e se transferiu depois para o Flamengo do Rio.

A paixão pelo futebol não impedia que o grupo de amigos criasse um time intitulado Clube Atlético Flamengo, ou simplesmente Flamengo da Vila Melhado, agremiação que existia em 1963 formada pela nossa juventude para se divertir e sempre reunir amigos.

A união daqueles garotos era imensa, coisa de cinema, lembrando o filme “Conta Comigo” (Stand By Me), de 1986. No filme, um grupo de quatro amigos sai para uma aventura em busca de um garoto, da mesma idade deles, que havia desaparecido. Porém, a aventura acaba sendo uma autodescoberta de cada personagem, seja de brigas ou mostrando a verdadeira amizade. Para o time da Vila Melhado era a mesma coisa. Na hora de uma dividida em campo tinha sempre o apoio de cada jogador, ou amigo, para que não desistissem da vitória. Os descontroles aconteciam, mas só no campo, não envolvendo o caráter e amizade de cada um, coisa que não percebemos mais no “futebol business” de hoje.

RUMO AO AMADORISMO

“O futebol amador? Esculhambaram com ele… Não tem mais graça. Os estádios ficavam lotados, existia alegria de se ver jogar”, disse um certo dia Itamar

O Flamengo deve sua vida graças a uma pessoa: Álvaro Fleury Fina, seu eterno presidente. A aproximação dele foi pelo amor ao futebol. Não perdia um jogo amador na época. A amizade com um jogador do Flamengo foi vital para que ele se tornasse o presidente do clube: Aristides, ex-atacante do time, ainda criança, trabalhava em um chaveiro no Mercado Municipal. Álvaro fazia entregas por lá e criou um laço de amizade com o até então garoto da Vila Melhado. Sabendo da existência do Flamengo, Álvaro propôs a ideia da criação de uma sede do clube e de administrar aquela geração em 21 de abril de 1967, data oficial de sua fundação.

Com isso, o Flamengo tomou forma e passou a ser um time amador, com jogadores de menos de 18 anos. A sede, não ficou no bairro, mas sim na Vila Mendonça. Naquele ano, o “seo” Mendonça, tinha cerca de 20 casas para alugar e então o presidente Fleury conseguiu uma delas para ser a sede do time. Aristides conta também que o “presida” teve papel importante em sua vida.

“Quando eu tinha 17 anos, o “seo” Álvaro me ajudou muito. Como trabalhava de chaveiro, criei a minha própria oficina de chaves no Mercado Municipal, parte dela sendo custeada por ele. “Seo” Álvaro era como um pai para mim”, conta.

Além da sede, outro fato curioso escreve a história do Flamenguinho. Um dos fundadores do time, Milton Franchini, o Milton Sambista, conta que a equipe realizava seus jogos no campo da Atlética Ferroviária, “pois a sede ficava ali por perto”, explica o ex-jogador.

Grecco e Faixa, goleiros nos anos 60; na foto ao lado, Nenê Bahia

Ademar Prado, ex-lateral esquerdo e serralheiro na época, comentou um dia que a equipe não fazia treinamento tático e físico, mas “treinava” de outra maneira. “Os jogadores combinavam de ir para sede do Flamengo não para treinar, mas sim jogar bilhar; era uma descontração. Só jogávamos bola quando havia uma partida pelo amador (risos)”, comentou Prado.

OS CRAQUES

Sambista lembra também dos craques que passaram pelo clube. “Quando o Tonhão (ex-zagueiro da ADA e Ferroviária) encerrou a carreira profissional, jogou pelo nosso time. Ao invés de zagueiro, era o nosso centroavante, pois tinha um canhão na perna direita e por ser alto também”, relembra.

Outro grande jogador que atuou no Flamengo foi Palhares, que logo depois se tornou amador e profissional da Ferrinha, jogando ao lado de Sérgio Bergantin, Mauro Pastor, Amauri, entre outros na época áurea afeana.

Um fato curioso também tomou conta daquele time: o então goleiro Faixa pendurou as luvas em 1967 e tornou-se técnico da equipe, fazendo o clube subir para a Primeira Divisão do amador no ano seguinte.

OS IRMÃOS BAHIA

Um de seus principais jogadores e artilheiro da época, Itamar Alves, um dos irmãos Bahia, encantou aquela geração. Atacante clássico com faro de gol colocava medo na zaga adversária junto com o irmão, Nenê Bahia. A torcida aclamava pelos irmãos.

Itamar, Nenê Bahia, Luizinho Garcia, Robertinho, Zé Carlos, Betinho e Demá Prado e tantos outros craques que brilharam no futebol amador

“Os torcedores do Flamengo eram fiéis, briguentos e temidos pelos outros. Falavam sempre dos irmãos Bahia para por medo no adversário, mas era bem folclórico isso. Meu irmão era ponta direita do time. Eu recebia muitos passes dele para o gol. Éramos afinados dentro de campo”, conta Itamar.

Nos jogos contra o seu maior rival, o Palmeiras da Vila Xavier, ele recorda que não tinha vida fácil quando jogava no campo do adversário. “Nos jogos contra o Palmeiras, o Tutú (árbitro e que trabalhava na LAF, não deixava a gente ganhar os jogos lá dentro. Era um apito amigo do Palmeirinha (risos)”.

Em Itamar, o goleador, apenas os cabelos esbranquiçaram. A voz ardida soa rouca, como nos velhos tempos. Hoje, é apenas um torcedor da Ferroviária a lamentar que o futebol amador tenha tomado outro rumo. “Antigamente era muita garra e raça, diferente do que se vê atualmente. No futebol de hoje, o menino que está começando tem medo da chuteira do adversário; e, há também o lado comercial a estragar aquilo que víamos como pureza dentro do esporte amador”, salienta o ex-jogador.

O ACESSO E O TÍTULO DE 80

Aristides, outro craque, recorda da decisão do acesso para a Primeira Divisão do Amador de 1968, quando o Flamengo enfrentou a Academia São Geraldo. Em um jogo muito disputado, houve empate, 1×1, levando a decisão para os pênaltis. Aí o Tonhão se transforma no personagem da partida.

Ainda garotos, Zinho, Zé Luiz, Zezinho, Jaime Mota, Dedeu e Grecco; Luizinho Garcia, Aristides, Catanduva, Meireles e Beletti puderam aprender que um dos fatores para o relacionamento se perpetuar, é através do companheirismo

“As cobranças chegaram ao momento derradeiro. Tonhão era o nosso último cobrador. Era difícil segurar o chute potente dele e estávamos confiantes. Ele soltou a bomba, mas não foi em direção ao gol, indo direto para a arquibancada. Mesmo assim, o acesso para a Primeira Divisão estava garantido (subiam dois), mas ficamos tristes em não termos levantado o troféu. Chorei naquele dia”, conta Aristides.

O Flamengo disputou a Primeira Divisão do amador de 1969 até a década de 80. Logo no primeiro ano ocupou a sexta e no ano seguinte a quinta colocação, fato raro, pois o campeonato era equilibrado e contava com equipes tradicionais, sempre brigando nas primeiras colocações. A juventude dava o ar da graça junto aos marmanjões.

A GRANDE CONQUISTA

Com 580 pagantes no Estádio Municipal “Tenente Siqueira Campos” e renda de Cr$ 11.600,00, o Flamengo vence a Usina Tamoio, por 1 a 0, gol de Becinha aos 6 minutos do primeiro tempo e sagra-se campeão amador, naquele 19 de outubro de 1980. Antes na semifinal, os companheiros de Palhares derrotaram a forte equipe do Grêmio Penitenciária por 2 a 1, gols de Mimi e Becinha para o rubro negro. Na outra semifinal, o Tamoio eliminou o Santana,  ao vencer por 3 a 2. Tutu, Chumbinho e Tardim (na prorrogação) marcaram para o time da usina.

O JOGO

Com a vantagem, desde o início da partida, o Flamengo concentrou-se na defesa. Foram 84 minutos de sufoco. Apoiado pela torcida, o Tamoio se lançava ao ataque. O goleiro Din Din do Flamengo, os laterais Edélcio e Eduardo, a zaga Bolão e Serginho, e mais o Português, que entrou no lugar do volante Palhares na segunda etapa, nada permitiam aos atacantes do Tamoio, acionados com criatividade pelo meia Chumbinho. As chances do bicampeonato estavam adiadas diante da raça e garra dos flamenguistas.

Luiz Carlos Grecco, Álvaro Fleury Fina, Aristides, Português, Justino, Sambista, Demá Prado, Luizinho Garcia, Carrapixo e Nenê Bahia; Tutu, Zosinha, Ivan Borghi, Osvaldão, Itamar, Tonho Palhares, Jordão e Beletti, o grande time de 1970

A fanática torcida do Flamengo comemorou e muito ao apito final do árbitro Laércio de Arruda Ferreira, o Pelica, que teve os auxiliares Luiz de Oliveira Berro e Valdevino de Jesus e o representante da Liga Araraquarense de Futebol (LAF), Ernani Salvador Volpe.

 O técnico campeão Luiz Garcia, o Pito, mandou a campo: Din Din; Edélcio, Serginho, Bolão e Eduardo; Palhares (Português), Hudson Rosalino (Zé Carlos) e Becinha;  Aristides, Salomão Alves e Mimi.

O Tamoio do técnico Cabelo, da Secção Mariza, teve no vice-campeonato: Donizete; Aírton, Sebeca, Vaguinho e Vadeco; Varejo, Dirceu e Chumbinho; Tutu (Chitinha), Gu e Tardim.

Apesar do clima tenso, o sargento Edmilson Rodrigues e um pelotão de 20 soldados do 13º BPM cuidaram e bem, da ordem e segurança no templo do futebol amador de Araraquara.

Participaram do Campeonato Amador de 1980 além do campeão, o Flamengo e do vice Tamoio, Treze de Maio, Cacic, Palmeiras, Atlética Ferroviária, Dema, Quitandinha, Aliança, Sporting Benfica, Estrela, Santana e Grêmio Penitenciária de Araraquara.

O FIM PRECOCE

Se estivesse em atividade, o Flamengo da Vila Melhado teria completado no dia 21 de abril de 2016, 49 anos de fundação. O time, considerado sonho de alguns, foi na verdade o carro-chefe promocional de um dos mais importantes bairros da cidade. Do início até o final dos seus dias, o chamado “Flamenguinho” teve conquistas memoráveis e só não foi em frente por causa da morte do seu presidente e torcedor símbolo: Álvaro Fleury Fina, figura das mais estimadas no futebol amador de Araraquara.

Bolinha, irmão de Ademar Prado, um grande goleiro

Os garotos de Vila Melhado tinham um futuro brilhante. A harmonia pairava sobre o elenco motivado pelas conquistas na base da raça e determinação. Mas não contavam com uma pedra no meio do destino que daria uma pausa para o sonho rubro-negro. Álvaro Fleury Fina, viria a falecer em 1972, vítima de infarto fulminante aos 66 anos de idade. Pegando todos de surpresa, não existia mais clima para o time continuar o sonho da conquista do futebol amador da cidade. O sonho daquela juventude foi apanhado de forma desprevenida. O Flamengo continuou suas atividades até os anos 80, mas sem o império de Fleury, que carregou a bandeira rubro-negra no peito e na alma, trazendo alegria para cada jogador e torcedor de Vila Melhado.

VALEU BOLINHA

A exemplo dos irmãos Bahia, os irmãos Prado também tiveram importante passagem pelo Flamengo, da Vila Melhado. Excelentes profissionais na área de serralheria e marcenaria, ambos se tornaram conhecidos por suas atividades durante muitos anos. Ademar sempre foi muito brincalhão entre os amigos. Euclides Prado, o “Bolinha” – um bom goleiro, afastou-se do trabalho por motivos de saúde, falecendo algum tempo depois. Contudo, sempre será lembrado por aqueles que acompanharam o futebol amador na época.

(Fontes complementares: jornal O Diário, o escritor Vicente Henrique Baroffaldi, autor de Futebol na Terra do Sol e o jornalista Tetê Viviane)