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Saudades dos boleros do Trio Coringa

Com o comando do talentoso e exigente Daniel Ianni, o grupo emocionava corações com seu repertório romântico. Quem nos conta essa história é o próprio Ianni, que aos 87 anos, carrega consigo o sentimento de ter ajudado a construir a história cultural de Araraquara.

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Formação clássica: Dirceu Ianni (esquerda), Daniel Ianni (direita) e Geraldo Ianni (deitado)

Por Matheus Vieira

Tarde de sol intenso. Chego a um sobrado no bairro Jardim das Estações. Bato palma. Um rapaz da casa ao lado (um comércio) ouve. Ele vem na minha direção e diz: “Meu avô estava ansioso a sua espera, vou buscá-lo”, avisa.

Após alguns minutos de procura, ele volta com um senhor elegantemente vestido, camisa e calça social, ignorando as altas temperaturas típicas da cidade. Com uma educação ímpar, sou convidado a entrar. Sou recebido com um cumprimento vindo de uma voz grossa, imponente: “Estava aguardando por você”, diz.

Ianni com sua composição

Foi assim que consegui alguns minutos com um dos mais importantes cantores de Araraquara: Daniel Ianni. Marquei essa conversa com ele para escrever esta reportagem sobre o Trio Coringa, grupo vocal que foi sucesso em todo o Estado na década de 60. Mas, no final das contas, acabei sabendo detalhes de toda sua vida musical, sempre enraizada na Morada do Sol.

“O Coringa foi o segundo grupo que montei. Comigo, tocavam meu irmão Geraldo Ianni e meu primo, Dirceu Ianni. Essa foi a primeira formação. Não me recordo ao certo quando começamos. Talvez em 1956. Mas ficamos na ativa por cerca de 10 anos”, pontua.

Em Araraquara, um dos grandes momentos do Trio Coringa ficava por conta da Domingueira Alegre, programa de auditório destaque na Rádio Cultura. Um dos apresentadores era o comunicador Ênio Rodrigues, que tornou-se num dos mais afamados locutores esportivos do Brasil na Rádio Bandeirantes. “Era uma lotação só. Nós chegávamos a dar autógrafo até em papel de pão”, lembra Ianni.

A estrutura do Trio Coringa era profissional, contando até com um corpo de bailarinas convidadas. “Chegamos a gravar um disco de 78 rotações na Rádio Morada do Sol. Entre elas estavam os sucessos ‘Ninho de Felicidade’ e ‘Ai como eu penei’. Nossa inspiração direta era o Trio Irakitan”, revela.

Arte Vocal: Mara Ianni Estorniolo, Osmar Placeres e Daniel Ianni

Inclusive, no ano de 1965, com a morte do cantor do trio, Edson Reis dos Santos, o “Edinho”, Seo Daniel foi cotado para o cargo, porém decidiu não aceitar o convite. “Para tal, teria que me mudar de Araraquara. Na época, trabalhava também nos Correios e não quis deixar minha família”, revela.

Mas o convite não foi à toa, afinal o Trio Coringa era sinônimo de música de qualidade. Certa vez, o grupo foi convidado para uma performance em São Paulo, dentro do programa do apresentador de televisão Aírton Rodrigues, na TV Tupi.

Se ganhássemos o concurso, um contrato de seis meses seria assinado para apresentações corriqueiras em um concorrente espaço paulistano. Para tal, cada um receberia uma boa quantia em dinheiro. “Ficamos em um hotel de luxo e estávamos confiantes que faríamos bonito. Mas o Dirceu sumiu e perdemos a chance”, lamenta.

PASSAGEM COM MAZZAROPI

Mazzaropi até que tentou levar o Trio Coringa para participar dos seus filmes produzidos em sua grande parte pela Pam Filmes – Produções Amácio Mazzaropi, a partir de 1958

Dirceu Ianni era o galã do trio. E também o mais problemático, principalmente pelo gosto boêmio.  Mas foi Geraldo Ianni que chamou atenção de uma estrela da época: o ator e cineasta Amácio Mazzaropi.

O Trio Coringa cruzou com a estrela do cinema nacional através de um empresário de Ibitinga, que colocou o grupo para se apresentar em um show do ator, que mesmo não sendo bom cantor, fazia uso de seu sucesso para esgotar bilheterias. O trio impressionou Mazzaropi que logo imaginou ter o grupo para reforçar o seu cast de artistas.

Mazzaropi quis então conversar com Geraldo Ianni e marcou um encontro. Caso Ianni topasse, o Trio Coringa faria uma ponta em um de seus filmes. “Quem nos deu esse recado foi um empresário dele. Geraldo não topou e ficamos de fora”, conta em tom de brincadeira.

 CHEGADAS E PARTIDAS

Os Namorados do Samba, em sentido horário: Antônio Moreira, Daniel Ianni, Neco, Tico e Doca

O fim do Trio Coringa ocorre no fim da década de 70. Próximo ao fim, Osmar Placeres substituiu Geraldo Ianni, juntando-se a Dirceu e Daniel. Essa foi a formação até o último capítulo do grupo. Dirceu Ianni morreu em maio de 2012, aos 75 anos, vítima de Alzheimer. Placeres faleceu por conta de um câncer em abril do mesmo ano. Geraldo ainda está vivo, porém muito doente.

A vivência do Trio Coringa contudo, dentro do mercado de shows foi das mais expressivas e da própria expectativa. Suas apresentações ocorriam em rádios, casas de espetáculos e até mesmo em churrascarias. Um dos pontos mais frequentados por eles foi o antigo Galeto Ao Primo Canto, em frente a Igreja de São Geraldo nos anos 60. Enorme público comparecia para acompanhar os boleros do trio. Do lado de fora da churrascaria havia o tradicional footing com os homens fazendo um enorme corredor e por onde passavam as mulheres.

Tempos depois com o encerramento do Trio Coringa, Daniel Ianni seguiu na música, formando mais dois grupos: Namorados do Samba (uma fusão com o Trio Marajó) e o Arte Vocal, o mais importante dos dois. Uma curiosidade é que este grupo contou com uma nova geração de artistas da família, no caso Geraldinho Ianni e Mara Regina Ianni Estorniolo, filhos de Geraldo e Daniel, respectivamente. Osmar Placeres tam-bém fez parte.

Geraldinho, uma nova geração de artistas dentro da Família Ianni

“Desde minha infância ouço músicas românticas graças a oportunidade de fazer parte de uma família de músicos, cuja união começou com o Trio Coringa. O tempo passou. Geraldo e Daniel continuaram juntos e fundaram o Arte Vocal no fim da década de 90, grupo que tive a oportunidade de não só ouvir, mas também de participar como tecladista”, conta Geraldinho.

A qualidade musical continuava a mesma e o acompanhamento do público tornou-se praticamente uma questão de fidelidade.

“Lembro que quando criança, ia aos ensaios do Trio Coringa bisbilhotar e meu pai sempre me dava bronca, pedindo para que eu ficasse quieta. Era muito bagunceira e eles extremamente sérios. Cantar com eles tempos depois foi um presente imenso que ganhei”, lembra Mara.

Glória, Mara e Daniel

Com um repertório formado basicamente por boleros e bossa nova, as primeiras apresentações do Arte Vocal foram feitas no restaurante do Freitas, localizado dentro do Terminal Rodoviário de Araraquara.

“Daí para frente começamos a ser chamados para outros shows em diversos locais em Araraquara, como a Cachaçaria, no antigo Shopping Tropical. Fizemos também alguns bailinhos no Clube Araraquarense, ao lado da Prefeitura Municipal. O grupo agradava muito as pessoas”, pontua Geraldinho.

“Tínhamos um forte trabalho de divulgação. Chegamos a participar de programas televisivos na Rede Mulher e também na EPTV. Demos até uma entrevista para o Jô Soares, quando ele estava no SBT”, afirma Mara.

O grupo gravou um disco de sambas e boleros de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Intitulado “Eu não sei se existe amor na eternidade”, o material conta com uma composição de Daniel Ianni,  “Ninguém sabe o que eu quero”. Dele, foram feitas duas mil cópias. O LP hoje é uma raridade. Após três anos de trabalhos, os músicos resolveram fazer shows apenas por diversão, à capela mesmo, em encontro com amigos.

Com o fim do Arte Vocal, Daniel Ianni parou de cantar profissionalmente.  Casado com Gloria (com quem teve quatro filhos), atualmente, ocupa boa parte do seu dia com artesanato. As mãos com as nítidas marcas da vida esculpem obras em madeira e também arriscam acordes no violão.

Em publicação em seu facebook, Tony Pent, ex-vocal dos Jungles fez uma homenagem ao Trio Coringa. “Fui muito fã desse trio. Certa tavez, na casa de um tio, achei uma fita com uma gravação em rolo feita pelo Geraldo. Eu emprestei esse gravador pra ele. Nela, tinham coisas dos Jungles, inclusive. Que fique eternizado o trabalho desses três cantores: Daniel, Geraldo e Dirceu”, finaliza.

Mara em performance com o amigo Francisco Andregheto; na foto ao lado, Daniel, que será por todos sempre lembrado