“Vamos Ivan, que tá na hora”, disse o repórter de futebol amador Geraldo Moreira, na porta entreaberta da redação do jornal O Diário, naquele 10 de dezembro de 1967. Foi o tempo de subir a Duque, tomar um conhaque servido pelo Olívio Alves Bezerra, no Bar do Pernambuco e estar meia hora depois abraçando na chácara da Construtora Barbieri, o professor Jorge Gonçalves Dias que festejava o vice-campeonato amador de 1967, conquistado pelo seu time, o Itamarati. Naquele domingo de céu aberto, disse ao Moreira: “Me sinto em casa” e a segurança da frase, parecia vir arrastada na simplicidade das pessoas, cuja amizade perdura até hoje. Quarenta e sete anos não foram suficientes para apagar imagens que até hoje são preservadas com muito carinho; também foi alí que guardei do professor a frase dita em uma pequena roda de amigos: “o esporte é uma linguagem universal”.
Mas como ele, um dentista, professor e coordenador de curso na Odontologia, podia gostar tanto de futebol e ser o fundador e presidente de um time amador? Era isso que fazia a diferença: a sua humildade, característica que o tornava um sonhador.
SEU CORPO, SUA ALMA
Nos anos dourados do nosso futebol amador era raro um time surgir e se desfazer pouco tempo depois. Um clube, no entanto entrou para a história, pois teve duração efêmera deixando, contudo sua marca com resultados notáveis e uma campanha arrasadora, e, pelo seu futebol o Esporte Clube Itamarati caiu na simpatia popular.
Fundado em 1966 por Fladyr Sossae, o popular Nego, apaixonado por futebol e tendo como presidente o professor da UNESP, Jorge Gonçalves Dias, o E.C. Itamarati possuía jogadores na média de 28 a 30 anos de idade. Os treinos aconteciam duas vezes por semana, nos finais de tarde, no campo do Paulista, onde está localizado o Senac e Fórum, nas ruas dos Libaneses e Castro Alves, cedido pelo seu presidente Omar de Souza e Silva (o vereador Mazinho). De forma humilde, o time se empenhava e toda ajuda era considera bem vinda.
O time foi se estruturando através de doações: camisas, calções, meias e chuteiras, mas mantendo o foco que era a bola. Logo em seu primeiro ano de fundação, o Itamarati após realizar uma série de amistosos em cidades ou fazendas da região, ingressou no Campeonato Amador para se igualar tecnicamente as equipes de peso na cidade: Andarai, Gracianauto, Academia São Geraldo, Atlética Ferroviária e por aí vai. Com a chegada do Itamarati, só o futebol poderia agradecer a todos.
Um daqueles garotos do Itamarati na época era Valdemir Somenzari, o Miro, que recorda com saudade da sua função como ponta direita. “O time jogava por diversão. O Galo (técnico) era uma grande pessoa e sempre nos orientou dentro de campo”. O ex-jogador destaca também a importância do presidente Jorge Gonçalves Dias para a equipe. “Era um cara formidável, não perdia um treino ou jogo da gente. Na época em que joguei o Campeonato Amador, ele foi o primeiro a me pagar um bicho na vida”.
E o bicho a que Miro Somenzari se refere é justamente na partida mais importante de sua vida. “Jogamos contra o Gracianauto, que tinha um timaço na época. Era o nosso primeiro grande campeonato e enfrentamos aquele grande time. Surpreendemos e goleamos por 4×1”.
Além das boas lembranças, Miro recorda de um lance curioso. “Houve uma partida que teve uma grande confusão. O árbitro deu cartão amarelo para o Nêgo e vários jogadores foram tirar satisfação com o juiz. No meio do tumulto um jogador do outro time deu um pontapé no árbitro. Ele virou, achando que tinha sido eu, e me acertou um belo de um pé-de-ouvido (risos)”.
BOTINA, SÓ NO APELIDO
O Campeonato Amador de 1966 foi marcante para o Itamarati. De forma humilde, o time foi criando um padrão de jogo e se reforçava aos poucos. Não havia aquele grande jogador que pudesse fazer a diferença. Era o conjunto que jogava por música e entoava durante as pelejas do Amadorzão. Um dos percursores foi Claudiney Costa, o “Cláudio Botina”.
“O time do Itamarati ainda estava em formação antes do início do campeonato. Com a minha chegada e mais outros dois jogadores, o time se tornou diferente. Não sei se por conta minha (risos), mas éramos imbatíveis!”
E foi assim durante todo o campeonato. Com apenas um empate, as outras partidas foram de grandes vitórias, culminando assim para a decisão diante, mais uma vez, do Gracianauto. Porém, o time imbatível caiu justamente na grande final diante de um time de grande tradição no futebol da cidade.
“Aquele time foi marcante. Mas, apesar da derrota, nada tirou a experiência daquela época. Tanto na parte esportiva, como na pessoal, influenciou muito o jeito de ser. Eram pessoas queridas naqueles tempos e que, graças ao futebol, fomos e somos reconhecidos até hoje. Muitos me param na rua e nem me lembro de onde é a pessoa, mas sempre o assunto é futebol”, relembra o ex-meia-direita Cláudio Botina.
Sobre o presidente ele comenta com alegria cenas marcantes: “Era uma figura. Andava com a sua vespinha (moto) de lá pra cá pela cidade e chamava muita atenção. Além disso, nos apoiava muito e foi uma pessoa formidável. Deixou muitas saudades ao nosso futebol amador”.
MÃOZINHA CORINTHIANA NA VIDA DO ITAMARATI
Nêgo sempre manteve boas amizades no futebol. Afinal, era um grande apaixonado e não perdia nada da Ferroviária e do seu Palmeiras. Dentre as amizades uma foi de João José Galhardo, eterno xerife do Fluminense campeão brasileiro de 1970, com passagem pela Ferroviária e Corinthians.
“O Nego sempre foi um grande amigo. Na época em que eu joguei pelo Corinthians, mantinha contato com ele. Chegavam as férias no profissional, sempre voltava para Araraquara e acompanhava o futebol amador, principalmente o Itamarati”.
Entre idas e vindas, Galhardo acabou presenteando o amigo com novos materiais esportivos para o Itamarati. “Eu com alguns torcedores corintianos, fizemos uma vaquinha e compramos vários uniformes, calções, meiões e chuteiras para os jogadores do Itamarati”, relembra o ex-zagueiro que começou na Ferroviária, indo depois para o Corinthians e Fluminense.
Cheio de histórias, Galhardo relembra com carinho do tempo em que foi jogador de futebol. Infelizmente, interrompeu a carreira aos 28 anos após sofrer uma lesão no menisco em partida disputada na Bahia.
“Na época meu contrato havia se encerrado com o Fluminense. Zagallo era o técnico e o Parreira o preparador físico. Se operasse no Rio, o Fluminense renovaria por mais um ano comigo. Não tive escolha”.
Após a cirurgia, Parreira o acompanhou até a Urca, onde fez fisioterapia para voltar a andar normalmente. Porém, após a retirada exagerada de massa muscular (cerca de 7 cm), encerrou a carreira cedo. “O que resta agora é saudade. Tenho muito carinho pelo Fluminense, o qual fui campeão. Mas não posso deixar de destacar Araraquara em minha vida. Dos clubes que passei, Pereira Lima (presidente da Ferroviária na época), foi o melhor dirigente que já vi”.
OBRIGADO NÊGO
Nêgo, infelizmente, se foi. Deixou um vazio no futebol amador, onde as histórias carregam seu nome, assim como de tantos outros personagens, como a esposa Olinda Sossae.
“Jorge Gonçalves Dias e o Nêgo se conheceram na mercearia em que ele tinha na Av. José Bonifácio com a Rua 12 (hoje Casa Lima). Ele morava próximo de lá e ia quase todos os dias na mercearia. O Nêgo sempre foi comunicativo e atencioso com qualquer pessoa que frequentava lá. Aí surgiu uma grande amizade e criaram um time de futebol amador”.
A partir daí, Olinda começou a acompanhar o futebol ao lado do marido. Através de doações de uniformes, Nêgo comprou alguns números para colocar na camisa. Sabendo disso, Olinda se ofereceu a costurar os números na camisa.
“Só que quando isso aconteceu, estava grávida e a barriga enorme. E eu usava aquela máquina de costura de pedal. Por causa da barriga, não tinha a movimentação completa no pé. Foi quando o Nêgo saiu correndo de casa, foi até o centro e comprou um motorzinho para colocar na máquina de costura (risos)”.
O seu fanatismo era grande pela grande Ferroviária. Sempre corria atrás de bola e não pensava em outra coisa a não ser assistir a um bom jogo de futebol. “Fui fazer um exame para ser professora em São Paulo. No mesmo dia, a Ferroviária jogou no Pacaembu. O Nêgo saiu do prédio onde estávamos e foi direto pro estádio, me largando sozinha”.
Além disso, querendo levar o povo aos jogos do Itamarati, Nêgo saia pelas ruas com sua Rural Willys para fazer a divulgação da partida. Fazia questão de passar na casa de cada amigo e informar sobre quem o Itamarati enfrentaria no dia. “Apesar disso, Nêgo foi uma pessoa sensacional. Bom filho, pai avô, marido. Era uma pessoa muito dedicada e esforçada. Tenho orgulho disso”.
Hoje, Olinda assiste os jogos do Palmeiras pela TV. A influência do marido faz parte do seu cotidiano. Entre uma partida e outra, os tempos do grande futebol são marcados na memória de pessoas que construíram cada pedaço dele na cidade. Pessoas, como Nêgo, é que faltam no futebol de hoje, que vestem a camisa, e não pensam no sucesso, dinheiro e fama, e não tem o empresariado envolvido por trás para sugar tudo o que há de bom em ser um jogador e apaixonado por futebol. O bom Itamarati deixou sua marca em todos nós.
PROFESSOR DA ODONTO COMANDAVA O TIME
O professor Jorge Gonçalves Dias, embora mineiro, tornou Araraquara para a formação da sua família e manter laços de amizade com profissionais da sua área, esportistas e sociais, desfrutando do carinho do Lions Clube Centro por muitos anos.
O professor Jorge Gonçalves Dias era natural de Serrania (MG), filho de Rita e Oscar Gonçalves Dias, que exerceu a odontologia como prático por anos, somente conseguindo sua habilitação quando foi inaugurada a Faculdade de Odontologia de Alfenas. Sua esposa, nossa avó Rita, diz hoje Jorge Gonçalves Dias Filho, foi uma mulher determinada, enquanto nosso avô foi uma criatura extremamente generosa, meigo com as crianças.
Durante o tempo em que Oscar era prático em odontologia, com Rita residiu em várias cidades de Minas Gerais. Depois de formado em ortodontia retornou a cidade de Serrania, onde morou por mais um tempo. Quando os filhos Jorge e José atingiram idade para cursarem o Científico, a família se mudou se para Cruzeiro em busca de melhores condições de estudo para “os meninos”.
Foram então matriculados em um colégio interno de padres, o Colégio São José. Lá cursaram todo o Científico. “Este colégio existe até hoje, sendo inclusive visitado por minha irmã Vânia, que viu os quartos dos alunos que nosso pai e tio frequentaram. Hoje é um colégio estadual”, lembra Jorginho, que trabalha na Biblioteca Municipal em Araraquara e também é músico.
Após se formarem, a família mudou-se para São Paulo onde Jorge cursou Odontologia e irmão Medicina, ambos pela USP. “Nosso pai se formou com a turma de 1953; o reitor era o Prof. Dr. Ernesto Leme, que se tornou um grande amigo da família”.
Jorginho conta ainda que a “família fixou-se em São Paulo, onde o pai e o tio se casaram, constituíram família e onde nossos avós estão sepultados”.
Por volta de 1960, Jorge Gonçalves Dias veio para Araraquara como docente da Faculdade de Farmácia e Odontologia juntamente com outros dentistas da época, e implantou o Curso de Ortodontia, porém, mantendo consultório em São Paulo onde atendia seus clientes paulistanos. Decidiu manter a família em Araraquara pela tranquilidade e qualidade de vida. Em 1962 participou em Buenos Aires do 1º Congresso Internacional da Sociedade Argentina de Ortodontia.
Foi assim sua vida em Araraquara, onde conquistou amizades e também se envolveu com o futebol amador sendo o presidente do Itamarati.
(História publicada originalmente em junho/2016)